30 abril, 2014

As origens familiares da Irmã Lúcia


A herança recebida dos pais é sempre fundamental para a pessoa que somos. Esta é também a consciência da Irmã Lúcia, a última de seis filhos da Sr.ª Maria Rosa e do Sr. António dos Santos. Como a própria pastorinha conta, era uma família humilde e sem grandes recursos, mas com a porta sempre aberta a quem chegava, muito generosa e com um grande sentido de rectidão e justiça. Estes foram valores que pautaram muito a vida de Lúcia e que foram aprendidos e integrados desde o berço paterno. Por outro lado, havia um grande sentido de proximidade e intimidade, de cumplicidade e amor, valores que a própria Lúcia viveu e recebeu de forma particular por ser a mais nova da família.



Lúcia nasce a 28 de Março de 1907, Quinta-Feira Santa. Como o Padre não quisesse baptizar a criança no Sábado Santo por ter nascido naqueles dias de tanto trabalho, porque os recursos eram pouco para duas festas tão próximas, o pai de Lúcia decide registá-la no dia 22; assim não havia motivo para o Prior não a baptizar no dia pretendido. E assim aconteceu. Conta a Irmã Lúcia, em tom de brincadeira, que no dia do seu nascimento pela manhã (ela nasce de tarde) a sua mãe tinha ido à missa e comungado e, por isso, ela teria feito a sua primeira comunhão antes de nascer.



Como filha mais nova que era, tornava-se o centro das atenções, pelo amor e carinho que recebia dos pais e irmãos mais velhos. Os seus pais sempre muito atentos e com um grande cuidado na formação do carácter dos seus filhos, fazem o mesmo com a benjamim da família, procurando transmitir-lhe os valores fundamentais para a sua vida e crescimento, os quais a própria Lúcia procurou sempre preservar e alimentar. Os próprios irmãos se revestiam de uma verdadeira atenção (quase paternal) para com ela, ambiente que lhe foi muito favorável e lhe permitiu desenvolver uma personalidade jovial, brincalhona, assertiva e trabalhadora. Tudo isto não a impedia de ter as suas travessuras, que a própria pastorinha contava com bastante graça nos recreios no seu tempo de Carmelita.

Se hoje procurámos conhecer um pouco o ambiente familiar da Irmã Lúcia e como foram os primeiros anos da sua vida, em breve teremos a oportunidade de saber e perceber a maneira como ela se preparou e viveu um dos dias mais importantes da sua infância: o dia da sua Primeira Comunhão. Iremos perceber como passou esse dia, como se preparou e viveu a sua primeira Confissão A seu tempo conheceremos esta história. Hoje ficaremos com esta pequena introdução.

17 abril, 2014

Viver em hi-fi



Quinta-Feira Santa. Dia de Alegria. Da Eucaristia. De nova sintonia. Em alta frequência, alto amor, alta fidelidade, hi-fi. Seja esta, Senhor, a nova caligrafia da nossa Poesia.

Dá-nos, Senhor, um coração novo,                             
capaz de conjugar em cada dia
os verbos fundamentais da Eucaristia:
RECEBER, BENDIZER e AGRADECER,
PARTILHAR e DAR,
COMEMORAR, ANUNCIAR e ESPERAR.

Dá-nos, Senhor, um coração sensível e fraterno,
capaz de escutar
e de recomeçar.

Mantém-nos reunidos, Senhor,                                             
à volta do pão e da palavra.
E ajuda-nos a discernir
os rumos a seguir
nos caminhos sinuosos deste tempo,
por Ti semeado e por Ti redimido.

Ensina-nos, Senhor,
a saber colher
o Teu amor
semeado e redentor.

Única fonte de sentido                                                            
que temos para oferecer
a este mundo
de que és o único Salvador.


D. António Couto, in Mesa de Palavras

13 abril, 2014

DOMINGO DE RAMOS: O TRIUNFO DO SERVO


Começo por confessar que, desde pequeno, gostei sempre do domingo de ramos. Na véspera, com o meu pai ou irmãos, íamos procurar nas oliveiras os ramos mais bonitos para a procissão. E, no dia dos Ramos, nunca me cansei de ouvir aquela leitura bem comprida da narração da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Em tempos de desânimo e desilusão o profeta foi enviado para anunciar uma palavra de consolação. Apesar da forte oposição que o aguarda, ele não «recua um passo» e permanece fiel ao Senhor «como um discípulo». A Igreja hoje não se assenta em cobardes, mas em gente determinada em servir o Senhor. Gente que «não desvia o rosto dos que a insultam e cospem». O texto de Isaías (primeira leitura) aplica-se inteiramente á paixão de Jesus. Apesar do sofrimento, nunca voltou atrás nem nunca renegou a Sua hora, para deixar a esperança da salvação a quem acaba por reconhecer que «verdadeiramente este Homem era Filho de Deus». Aliás, a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém só se entende à luz do mistério pascal. O verdadeiro triunfo é sobre a condenação e a morte.

A segunda leitura, para os meus gostos, é de uma beleza extraordinária e mostra o caminho que conduz ao triunfo: «Não se valeu da Sua igualdade com Deus…, tornou-se semelhante ao homem…, humilhou-se ainda mais…, obedeceu até à morte». Quem pode compreender este caminho? Não é isto o que diz o mundo. Mas, verdadeiramente, para subir é preciso saber descer e obedecer. «Por isso Deus O exaltou». Hoje atrevo-me a dizer que para caminhar com Cristo e como Cristo é preciso andar muitas vezes ao contrário de honras, êxitos, lugares de destaque, conquistas e vitórias do mundo. É preciso não ter medo dos caminhos e quelhas do mundo onde há tanta gente caída, insultada, cuspida, crucificada…, física e espiritualmente. Realmente é preciso estar na Paixão de Cristo para não fugir da paixão da humanidade.

Sobre a narração da Paixão, decididamente e por própria vontade não quero fazer nenhum comentário para não estragar tão comovente leitura. Só quero pegar num papel e apontar os nomes de todos os personagens que aparecem neste relato. Só quero ficar em silêncio e perguntar-me com qual deles mais me identifico. Quero pedir a Jesus que me faça forte para ser servo e determinado para O seguir até ao fim, onde começa toda a nossa glorificação.

Santa Teresa de Jesus, de quem celebramos 499 anos do seu nascimento, afirma: «Deus dá o prémio conforme ao amor que Lhe tiverem. E este amor, minhas filhas, não há-de ser forjado pela nossa imaginação, mas provado por obras. E não penseis que Deus tem necessidade das nossas obras, pois Ele só quer a determinação da nossa vontade» (3M 1, 7).

O Domingo de Ramos começa com a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Por isso, faço-me menino hebreu (como as crianças que O aclamaram), fico com o ramo de oliveira para, de onde estiver, gritar ao mundo que a paz há-de triunfar sempre. Entretanto: Hossana, hossana. Viva Cristo, Rei e Senhor, Crucificado por nosso amor.


Agostinho Leal, ocd

07 abril, 2014

Vamos conhecer melhor a Ir.ª Lúcia?


Percorrer a vida daqueles que nos precederam na vida e na fé é um exercício magnífico, inspirador e interpelador. Mais ainda quando tudo é feito à luz daquele "trato de amizade com Aquele que nos ama" (Santa Teresa de Jesus). Convido-vos a fazer esta descoberta comigo, de uma das mais belas mulheres da Igreja do século XX, agora apresentada em biografia pelo Carmelo de Coimbra: a Ir.ª Lúcia de Jesus. A Pastorinha de Fátima que teve uma ligação tão próxima com Maria, nas Aparições em Fátima e ao longo da sua longa vida, torna-se assim sinal de esperança e de renovada conversão a Jesus, ao Jesus Escondido que era tão querido do pequeno Francisco.



"Com a simplicidade com que ela viveu, vamos acompanhá-la no seu longo caminho, onde os espinhos não faltaram, mas por onde correu em abundância, como água cristalina de uma nascente sempre em direcção ao mar, o amor que lhe deu força na sua passagem pelo mundo, que para ela foi apenas o caminho para Deus" (Biografia da Irmã Lúcia, pág. 7). Sim, esta é a primeira lição que a Pastorinha de Fátima nos dá: a simplicidade não é sinónimo de facilidade; a forma simples, obediente e despojada com que viveu a sua vida, faz-nos perceber, a partir da nossa existência pessoal, que os problemas e as dificuldades podem ter sempre um novo olhar, que se torna renovador e libertador: o olhar de Deus.
Aqui surge uma segunda lição: "Foi uma vida enamorada de Maria. Ela quando se via envolvida por muitas pessoas, atenções e solicitações, costumava dizer: é tudo por causa de Nossa Senhora! E Nossa Senhora diria se a ouvíssemos: "é tudo por causa de Jesus!" Sim, porque tudo está dirigido a Ele na nossa vida" (Biografia, pág. 7). Uma pessoa apaixonada vive sempre pela pessoa amada. A vida da Irmã carmelita ensina-nos a ver isso mesmo; mostra-nos e faz-nos sentir que não é ela a figura principal, mas Aquele a quem ela se quis unir de forma tão especial. Primeiro, na sua infância, com as Aparições; depois nos seus anos de irmã Doroteia; por fim, como irmã Carmelita Descalça. Por tudo isto a sentimos e percebemos bem-aventurada. Tal como o sentimos e percebemos em relação aos seus primos.
Que esta caminhada com a Irmã Lúcia nos ensine e provoque a querermos ser chamados filhos de Nosso Senhor e de Maria. Que assim seja!

Filipe




Em busca de um caminho


Daniel fazia sozinho o caminho de Santiago de Compostela, uma das peregrinações mais concorridas da Europa, quando foi apanhado por uma tempestade.

Tom, seu pai e médico norte-americano, é imediatamente comunicado do falecimento do filho e desloca-se a França para recuperar o corpo.

Enquanto remexe na bagagem de Daniel e nos seus preparativos para aquela viagem, decide fazê-la ele próprio, no imediato, deixando toda a sua vida suspensa para continuar o objetivo do filho, procurando compreender o mundo que o inspirou e moveu para a ação.

Acarretou o desafio de não ter tempo para se preparar, de planear as coisas, de não lutar contra a reflexão prévia das dificuldades físicas da sua idade e carregou toda a sua bagagem (a da mochila e a de dentro também). Com efeito, deixou-nos perceber que as emoções são responsáveis pelas tomadas de decisão.

Durante o caminho cruza-se com outros 3 peregrinos de vários pontos do mundo e, numa dança entre a procura da solidão e companhia, percorrem-no juntos.

Todos eles com objetivos diferentes, com vivências distintas mas cada um à procura do seu sentido de vida. Entre a resistência em partilhar a sua motivação interior ou não, todos a tinham.

Não raras vezes ouvimos que a satisfação não está em chegar ao final do caminho mas que a aprendizagem está nele mesmo. Olhar para os lados no caminho, para tudo o que está à volta, e reposicionar a percepção do mesmo. A busca do Caminho de Santiago de Compostela é muito rica nisso mesmo.

“Vim para te levar para casa mas agora não tenho nada para levar” diz Tom no final do caminho num diálogo interior para com Daniel. Ele responde-lhe com toda a serenidade “Tem sim”. Talvez enquanto se liberta das cinzas do seu corpo no mar tome consciência de que não nos libertamos das emoções mas transformamo-las. Talvez também perceba que um dos grandes ensinamentos que fazemos aos descendentes é precisamente o de ensiná-los a caminhar. E qual será o caminho para perceber que esse objetivo foi alcançado?

“A “Terra prometida” é um caminho, uma terra que está onde está o homem que a deseja.”




06 abril, 2014

QUINTO DOMINGO DA QUARESMA: VOLTAR À VIDA




Neste quinto domingo da quaresma, depois de ler o relato da «ressurreição» de Lázaro, levantei o sobrolho da alma para ver se podia gritar: «Ressurreição à vista»! E, verdade se diga, que isto tem-me dado que fazer. Dou-lhe voltas e mais voltas, e não consigo entender bem esta questão da morte e ressurreição. Tranquiliza-me o facto de, no que toca a estas coisas da fé, Nosso Senhor nunca ter perguntado a ninguém se sabia ou entendia. «Disse Jesus (a Marta): «Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre. Crês nisto?» Ela respondeu-lhe: «Sim, ó Senhor; eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo» (Jo 11, 25-27).

S. Paulo diz que renascemos no baptismo, que é participação na morte e ressurreição de Cristo (cf. Rom 6,3). Por isso, o catecúmeno tinha que despir-se do que é velho e entrar nu na água, como se descesse ao sepulcro. Ali recebia o baptismo e, ao sair, era revestido com uma túnica nova, para indicar a nova vida que tinha recebido. Mortos para o pecado e ressuscitados com Cristo, os cristãos estão vocacionados para viver uma vida nova (cf. Rom 6,4). Neste contexto, entendo melhor as palavras do profeta: «Infundirei em Vós o meu espírito e revivereis» (1ª leitura). Sem o Espírito de Jesus ressuscitado somos pouco mais do que um cadáver sem vida, sepultados neste sepulcro do exílio. A ressurreição equivale à posse em plenitude do espírito de Deus. Cristo ressuscitou porque tinha em Si a plenitude do Espírito. Também nós «não estamos sobre o domínio da carne, mas do Espírito» (2ª leitura).

Este quinto domingo quaresmal está-me a dizer que a experiência da ressurreição de Jesus vive-se antes da morte, para cá da morte, fazendo e vivendo como Ele nos ensinou e mandou, pois só assim damos glória a Deus Pai: «Nisto se manifesta a glória de meu Pai: em que deis muito fruto e vos comporteis como meus discípulos» (Jo 15, 8). A força da ressurreição de Cristo é para se viver já, agora e aqui. Sobre a vida «para além da morte» podemos ter uma ideia. Mas a realidade agora é a vida «para cá da morte». Ora, como escreveu o papa Francisco (EG 231): «a realidade é mais importante do que a ideia». Por isso, a nossa esperança na vida eterna não é só para depois da morte. Jesus quer fazer-nos participar já, nesta vida mortal, da vida eterna. Não temos de estar à espera de morrer para começar a gozar a gozar do perdão de Deus e da intimidade com Ele. Os que acreditam não morrerão para sempre, porque, de alguma maneira, já entraram na vida. Assim o dizia a beata carmelita Isabel da Trindade: «Encontrei o meu céu na terra, porque o céu é Deus e Deus está na minha alma». Também Santa Teresa de Jesus, com a alegoria do bicho-da-seda, fala da ressurreição espiritual do cristão, do mistério pascal que se realiza por virtude da ressurreição de Cristo. Mas esta vida nova – viver nesta terra com o espírito de Cristo ressuscitado – exige a nossa colaboração: «Morra, morra este nosso verme – como fez o da seda quando acabou de fazer aquilo para que foi criado – e vereis como havemos de ver a Deus e sentirmo-nos tão metidas na Sua grandeza como aquele vermezito no seu casulo» 5M 2, 6). O nosso povo costuma dizer: «morte certa em hora incerta». Contudo, um cristão (aquele que tem o espírito de Cristo) pode acrescentar: «ressurreição certa em hora certa».


Ao fim destes cinco domingos – que foram verdadeiras catequeses baptismais: as tentações (que são o nosso estado actual), a transfiguração (que é o nosso destino), a Samaritana (que nos recorda que Cristo é a água que pode saciar a nossa sede mais profunda), o cego de nascença (que nos fala de Jesus, luz do mundo) e de Lázaro (que nos convida a pôr os olhos na ressurreição futura) – podemos entrar na Semana Santa e recordar que pelo baptismo morremos ao pecado e ressuscitamos para a graça. Que o Senhor Jesus nos conceda a graça de nos unirmos cada vez mais a Ele, abraçarmo-nos com a Sua cruz e participar um dia da Sua gloriosa ressurreição. Amém.


Agostinho Leal, ocd

05 abril, 2014

VIDA DADA EM ABUNDÂNCIA




1. A «caminhada» quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida espiritual: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), baptizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da Luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Actos 2,32-33; João 19,30.34; 7,38-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma – Domingo da dádiva da Ressurreição – os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Baptismal.

 2. A Ressurreição de Lázaro (João 11,1-45) constitui o sexto dos sete «sinais» do Mistério de Cristo segundo o Evangelho de João. Depois das bodas de Caná (João 2,1-12) (1.º), da cura do filho do oficial em Cafarnaum (João 4,46b-54) (2.º), da cura do paralítico na «piscina probática» (João 5,1-47) (3.º), da multiplicação dos pães e dos peixes (João 6,1-14) (4.º), da Iluminação da cego de nascença (João 9,1-41) (5.º), e antes do Sétimo Grande Último Primeiro «Sinal» que é a própria Ressurreição do Senhor, «o Sinal da Santa Cruz», decifrado pelo Espírito Santo, com que todos fomos (somos) marcados para sempre (Efésios 1,13; 4,30).

3. Em boa verdade, o episódio da morte / ressurreição de Lázaro remete de forma clara para a Morte / Ressurreição do Senhor. O tempo que marca a narrativa não é o tempo de Lázaro (da sua doença, da sua morte, do seu sepultamento), mas é o tempo (a hora) de Jesus, o Filho de Deus, Aquele-que-Vem sempre, passageiro total, pascal. Por isso, quando recebe a notícia da doença do amigo, Jesus deixa passar propositadamente dois dias (João 11,6), e é ao terceiro dia que se encaminha para a Judeia (João 11,7), e é ao terceiro dia que chama Lázaro da morte (João 11,43). Pouco importa que para Lázaro seja já o quarto dia! (João 11,17 e 39). Verdadeiramente importante é a hora-que-vem (!), agora, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus (João 5,25 e 28), Aquele-que-dá-a-vida (João 5,21; 1 Coríntios 15,45), esplendoroso Rio de Luz e de Sentido a inundar a terra inteira, enchendo-a de Vida e de Saúde (Ezequiel 47,1-12; Apocalipse 22,1-2). Verdadeiramente importante é este terceiro dia em que o Filho de Deus é glorificado (João 11,4), e suscita a fé de todos os intervenientes na cena: dos discípulos (João 11,15), de Marta (João 11,27), de Maria (João 11,29.32), da multidão (João 11,42), de muitos judeus (João 11,45).

4. Marta permanece ligada à corrente de uma teologia tradicional: «Eu sei (oìda) que ressuscitará na ressurreição no último dia» (João 11,24), e não deixa entrar em si a torrente da novidade enunciada por Jesus, que é Jesus: «Eu Sou (egô eimi) a ressurreição e a vida» (João 11,25). E, quando Jesus dá ordens para retirar a pedra (João 11,39), Marta avança logo a inutilidade, mesmo o desconforto de uma tal acção, dado que já lá vão quatro dias desde que Lázaro morreu (João 11,39). O certo é que éretirada a pedra (João 11,41), e a nova ordem de Jesus, Lázaro sai para fora ligado com as faixas e o rosto envolto num sudário (João 11,44).

5. Como tudo isto aponta, em contraponto, para a ressurreição de Jesus. Aqui, no caso de Lázaro, a pedra é mandada retirar (árate) e é retirada(êran). O verbo aírô [retirar] aparece nos dois casos na forma activa e no tempo aoristo. Entenda-se: por mãos humanas e por algum tempo. Mas quando se tratar do túmulo de Jesus, a pedra apresenta-se retirada (êrménon) na forma passiva e no tempo perfeito (João 20,1). Entenda-se: por Deus e para sempre! È o inefável que se abre diante dos nossos olhos! E também as faixas não prendem, e o sudário não encobre! As faixas estão no chão, e o sudário cuidadosamente enrolado em um lugar (João 20,6-7). Tudo está feito, e bem feito. Nenhuma acção de libertação é necessária, como o foi em João 11,44).

6. Significativamente estes discípulos de Jesus ficam confusos com o sono-morte de Lázaro (João 11,11-13) – a morte confunde-nos a todos (!) – mas compreendem perfeitamente que a ida de Jesus para a Judeia é a sua entrega à Morte (João 11,8), e vislumbram até o significado Baptismal dessa Morte, uma vez que manifestam o desejo de morrer com Ele (João 11,16), isto é, querem Viver aquela Morte! Como bons catecúmenos que seguiram fielmente o Mestre, aprenderam já que a Vida verdadeira brota daquela Morte na qual verdadeiramente somos baptizados (Romanos 6,3-4), com-mortos, com-sepultados, com-ressuscitados, com-vivificados, com-sentados na Glória! (Efésios 2,5-6; Colossenses 2,12-13). Sentada estava Maria (João 11,20), figura do díscípulo (Lucas 10,39); mas quando lhe é dito ao ouvido que o Senhor a chama (João 11,28), levantou-se (êgérthê: verbo técnico da Ressurreição: Lucas 24,34; 1 Coríntios 15,4) de imediato e foi ao seu encontro (João 11,29).

7. Belo, belo, belo este Jesus que vem ao nosso encontro, que sente as nossas dores e chora connosco, que se comove connosco, que nos ama e nos chama sempre, inclusive dos vales onde vamos caindo mortos. Ele é a Vida. Ainda hoje, em Betânia, actual al-Azariye, aldeiazinha situada na colina oriental que desce do monte das Oliveiras, a cerca de três km de Jerusalém, se pode visitar, descendo 24 degraus, o túmulo que a tradição popular atribui a Lázaro. Ao lado está a igreja franciscana, dita «da amizade», levantada pelo famoso arquitecto Barluzzi, em 1952-1953.

8. O imenso texto de Ezequiel 37,12-14 é uma belíssima metáfora plantada no meio da Escritura, uma lampadazinha (2 Pedro 1,19) que aponta já para a Luz nova e grande de Jesus. A metáfora mostra-nos que os exilados na Babilónia são como ossos ressequidos e sem nenhuma esperança. Eles estão na morte e na humilhação. O seu discurso não deixa dúvidas: «Os nossos ossos estão secos; a nossa esperança está desfeita; para nós está tudo acabado» (Ezequiel 37,11). Mas a Palavra de Deus manda também na morte. Apontando para o Novo Testamento, Deuschama os mortos dos seus túmulos, e fá-los reviver. Jesus que passa no Evangelho de Hoje «grita com voz forte» (João 11,43), e Lázaro, morto, saiu do túmulo.

9. Paulo não se cansa de nos lembrar a vida nova que habita os filhos de Deus (Romanos 8,8-11). «Viver em Cristo» ou «no Espírito» são fórmulas baptismais intensas que indicam a vida nova do baptizado: com o dom da Iluminação, marcado pelo Espírito até à Vida eterna. Mas agora é tempo de passar, como Jesus, ao estilo de Jesus, dando um testemunho credível da nossa condição nova de filhos de Deus, deixando o fruto do Espírito iluminar a nossa vida. E «o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5,22-23).

10. Sim, o Salmo 130(129) é um grito desde o abismo profundo em que jazemos atolados. São apenas 52 palavras hebraicas que atiramos a Deus, Senhor do Amor fiel (hesed) da Redenção (pedût). Cada orante que grita este Salmo sabe em que grau de profundidade está. Este é um dos Salmos graduais ou das subidas ou das peregrinações. É uma voz que sobe até àquele Senhor que não desprezou as nossas profundezas, mas até elas desceu, e até elas desce!


D. António Couto, in Mesa de Palavras

04 abril, 2014

12 Anos Escravo


Steve McQueen é o autor deste oscarizado filme sobre a escravatura. Michael Fassbender volta a colaborar com o realizador – é a terceira vez – ao lado de revelações negras que iluminam a tristeza da servidão com uma humanidade que comove, deleita e ensina. Este é o terceiro filme de McQueen, depois de Hunger e Shame. E o autor é quase um actor – pela omnipresença da sua singular sensibilidade, a perfeição do gesto com a câmara e uma apurada capacidade literária.

O terceiro filósofo do pódio Grego atribuía à verosimilhança uma das qualidades máximas da tragédia. Quanto mais próxima do real fosse a obra, mais verdadeira, mais autêntica. No cinema, o prólogo “baseado em factos reais” (mesmo que não incorporado nas páginas no filme), predispõe o espectador para uma intensidade mais humana do que um filme pode dar à partida – por se tratar de um filme e não da vida. Ou não fosse esta a razão fundamental de se anunciar ao interlocutor a sua dimensão extra-ficcional… Solomon Northup, homem concreto que existiu e pisou a terra como nós, voltou a sua pena para o Norte da literatura autobiográfica e em 1853 publicou a sua assombrosa memória, que vendeu trinta mil exemplares em três anos e depois deslizou para o esquecimento. Só voltaria a ser lida com atenção por dois historiadores que republicaram a história, juntando-lhe notas históricas, em 1968. Mais tarde, deu origem a uma série televisiva, e agora a esta longa-metragem do realizador britânico. Northup, que acompanhamos ao longo de duas horas, encabeça com a sua homónima obra todo um oceano de escravos de que não se conhece a vida porque eram escravos, e muitos porque não escreveram. Neste caso, a veracidade do que se conta parte do próprio ser humano que sofreu aquilo que ouvimos e vemos ser contado. No final do seu livro, o autor reforça aquilo que acaba de ser dito: “Isto não é ficção, não é exagero. Se falhei em alguma coisa, foi em apresentar ao leitor, de forma proeminente, o lado iluminado deste quadro”.

O filme começa com a apresentação da figura principal, Solomon, carpinteiro e violinista oriundo de Nova Iorque, pai de duas crianças, que é recrutado por dois colaboradores de um circo ambulante para um trabalho de breve duração mas alta remuneração. Sem avisar a mulher, Northup aceita o temporário emprego e parte com o par circense em viagem. O seu dom musical é pouca água para o rio que o espera, cuja foz é inesperada para a personagem, mas previsível para o espectador. Drogado e espancado depois do sono, Solomon é levado para Nova Orleães, onde ainda consegue, ao chegar, escrever uma carta à família, mas sem grande efeito – pois o seu rasto perdera-se pelo caminho. Solomon adopta o pseudónimo que lhe é atribuído e, forçado a esquecer a sua vida em Nova Iorque, inicia um novo ciclo da sua vida, que durará doze anos.

Se este filme desperta algum tipo de reflexão no espectador, dela não se pode falar sem mencionar o engenho de McQueen na forma como nos mostra cada fragmento deste filme. Ao falar de escravatura, estamos também a falar em liberdade. E uma das técnicas que McQueen usa para estabelecer esse contraste é alternar passos narrativos duros de ver com planos da natureza circundante, como as árvores ou o cair do dia, que nos trazem as sensações simultâneas de prisão e libertação. Além disso, a personagem principal é ao mesmo tempo a encarnação da ausência de liberdade e o desejo de a encontrar, e é nesse desejo que reside a sua vitória no encontro final com uma nova possibilidade de felicidade e plenitude.

Solomon Northup pode ajudar-nos a olhar a nossa vida com a aceitação e paciência próprias de um mártir. Num dos diálogos com Patsey, o seu grito é antes de mais um desejo fortíssimo de verdade e dignidade. “Não vou cair no desespero! Vou manter-me forte até que a liberdade surja!” Ao chegar a casa, depois de uma dezena de anos sob a alçada de latifundiários sem alma, pede perdão à sua família pela ausência. A sua dignidade nunca sucumbe, durante o longo período de servo, à resignação da maioria dos outros desgraçados. Diz ele, em forma de máxima, “Eu não quero sobreviver. Eu quero viver.” É este espírito que o leva a concluir a obra da sua vida com a paz interior que todos nós, filhos do pecado mas ávidos de bem, desejamos para nós mesmos. “Espero daqui para a frente levar uma vida justa e modesta, e por fim descansar no adro da igreja onde o meu pai dorme.”


António Seabra, in http://www.essejota.net/index.php?b=home