31 março, 2014

Experiência em Granada


Da janela do meu quarto contemplava a Serra Nevada. Nevada porque estava a serra cheia de neve no seu cume. Neste momento deixei-me maravilhar como à muito não acontecia. Parecia uma criança a contemplar a novidade que não é nova, mas que nos faz perceber que só com tempo e olhos de ver conseguimos ver aquilo que nas nossas rotinas não vemos. Deparei-me com a obra de um Deus que não se cansa de nos mimar.

E a minha experiência por Granada poderia ficar assim resumida, não fosse ela mais uma etapa no meu caminho de discernimento vocacional. Um caminho no qual me deparo com um amor incondicional deste Deus que me ama e quer para Si. A esta interpelação jamais poderei ficar indiferente e quieto, sem fazer nada.

Sim, sinto-me profundamente amado. Estes foram dias em que reconheço o quão Deus tem sido fiel na minha vida e para comigo. Perante este facto, como ficar indiferente e não querer responder ao Seu apelo?
No Carmelo de Granada continuei a perceber que Deus se continua a manifestar de forma tão simples e profunda, que quer manter uma relação de intimidade e despojamento, de uma maneira tão bonita que só a fraternidade carmelita poderia transmitir. Senti-me verdadeiramente filho de Santa Teresa e de São João da Cruz. Uma fé tão humana e tão divina que nos eleva ao mais profundo de nós mesmos. Aí onde Deus habita e quer efectivamente morar e encontramos a paz e a sabedoria para Lhe darmos o nosso "sim".



Esta minha visita ao Carmelo de Granda, casa de Postulantado Ibérico Carmelita, tinha como objectivo um reencontro com as raízes desta Ordem, tornou-se num passo mais, no sentido de me abrir à Sua vontade, a confiar a vida àqueles que Deus coloca na minha existência e, particularmente, nesta caminhada, para, deste modo, saber ler e discernir o que o Senhor quer de mim. Foi uma experiência que ocorreu entre os dias 17 e 22 de Fevereiro. Agradeço muito a Deus o acolhimento e o carinho com que fui recebido pela comunidade (9 Frades e 2 Postulantes); perceber que em Deus tudo é possível e que o difícil se torna fácil, especialmente quando temos pessoas tão boas para nos acolher e integrar na vida da comunidade.

Uma coisa peço: reze por mim ao Senhor, porque por mim mesmo não serei capaz de percorrer este caminho. Se é verdade que a resposta só eu a posso dar, não é menos verdade que esta vocação seja só minha, mas de todos os que comigo caminham, comigo se cruzam e partilham a vida comigo. Se peço, também agradeço a vida que me foi dada, todos os que fazem parte da minha vida e a possibilidade de poder partilhar de forma tão bonita a minha fé. Amém!

Filipe


30 março, 2014

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA: A LUZ DA FÉ!


O quarto domingo da quaresma é denominado liturgicamente como «Domingo Laetare», o «Domingo da Alegria». Também no advento se denomina o 3º Domingo como o «Domingo Gaudete». A caminhada que fizemos para o Natal e esta que estamos a fazer para a Páscoa é feita no sentido da alegria e da felicidade porque «um Menino nos foi dado» e porque «o Senhor veio para nos libertar do pecado com a Sua morte e ressurreição». Era este o pedido da antífona de entrada: Alegra-te, Jerusalém… Exultai de alegria.

A espiritualidade quaresmal quer fortalecer-nos na fé para que cheguemos ao dia de Páscoa e possamos sentir e viver na verdadeira alegria o mistério da morte e ressurreição de Cristo.

A luz da fé é um dom de Deus e não uma conquista da inteligência humana ou um gosto pessoal. A primeira leitura mostra-nos como a fé é uma nova maneira de ver as coisas e as pessoas. Quer Samuel, quer Jessé de Belém, pensavam que o rei que o Senhor tinha escolhido para o seu povo era Eliab, porque, além de ser o mais velho, era belo, forte e sábio. Enganaram-se, no entanto. O Senhor tinha escolhido David, que andava a guardar o rebanho e era o mais novo. E porquê? Porque «Deus não vê como o homem; o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração». Apetecia-me lembrar aqui o que diz o nosso povo: «Quem vê caras não vê corações». Ora Deus vê as caras e os corações. Deus vê por dentro. É esta luz que nós precisamos de pedir ao Senhor: a luz do Seu olhar. Quantas vezes, por causa das aparências, não passamos de cegos com os olhos abertos? Isto é, vemos mas estamos cegos para ver mais do que a estatura e a beleza exterior. Se «a bondade e a graça do Senhor nos acomapanharem todos os dias da minha vida» serei capaz de ver o que Deus quer e aderir à Sua vontade.

Cristo é a «Luz verdadeira que a todo o homem ilumina» (Jo 1. 9, 4-5). S. Paulo na Carta aos Efésios alerta para um antes e um depois do baptismo: «Outrora vós ereis trevas, mas agora sois luz no Senhor». Luz e trevas, morte e vida, vida antiga e vida nova, vida pagã e vida cristã. Antes vivíeis na ignorância, no erro, no pecado (as trevas). Agora «vivei como filhos da luz» e «procurai sempre o que mais agrada ao Senhor».

O cego de nascença (Jo 9, 1-41) é imagem do homem que deseja ver. Cristo é a «Luz do  mundo» que nos cura da cegueira interior, iluminando o nosso entendimento, a nossa memória e a nossa vontade para que a nossa fé seja cada vez mais viva e profunda, de modo a reconhecer e confessar Jesus como «o Senhor». Tal como na samaritana, podemos contemplar neste cego um itinerário de fé: ao início, Jesus é simplesmente um homem (v 11); depois, é um profeta (v 17); em seguida, é um homem de Deus (v 32-33); finalmente, é o Senhor (v 38). Na cura vemos acontecer um contraste: o cego abre-se progressivamente à luz do sol e à luz da fé, e os que podem ver (e tinham os olhos abertos) fecham-se à luz de Cristo (excomungam-no dizendo que não é um homem de Deus) e entram numa obscuridade cada vez maior. O cego fez o que Jesus mandou: «lavei-me e fiquei a ver». Nesta quaresma, Cristo, através da sua Igreja, também nos diz: Lavai-vos, purificai-vos dos vossos pecados, abandonai as obras das trevas.

Finalmente, a piscina de Siloé. Em hebraico Siloé significa Enviado. Jesus é o verdadeiro Enviado. Pelo nosso baptismo, fomos lavados e purificados no seu Sangue. Por isso Jesus nos envia a testemunhar a fé: «Como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jo 20, 21). A fé sem obras está morta. E, no dizer de Santa Teresa de Jesus (2M 1, 5), «quando a fé está morta… queremos mais o que vemos do que aquilo que ela nos diz».

         Senhor, mistura também hoje a tua saliva (símbolo da vida divina) com este barro, que sou eu, para que renasça em mim a nova criatura iluminada pela Luz de Cristo. Amém.


Agostinho Leal, ocd

29 março, 2014

LUZ QUE LAVA E ALUMIA O CORAÇÃO



1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, baptizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do baptismo [= execução do programa filial baptismal] para os baptizados, preparação para o baptismo por parte dos catecúmenos (Sacrossantum Concilium 109), que têm neste Domingo IV da Quaresma – Domingo da dádiva da Luz – os seus segundos «escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.

            2. O Evangelho narra a dádiva da Luz por Jesus à nossa pobre e cega humanidade (João 9,1-41). Deus é Luz (1 João 1,5), e é na sua Luz que nós vemos a Luz (Salmo 35,10). Ora, a Luz veio ao mundo (João 3,19; 12,46) para dar a Vida ao mundo. Veio (elêluthen) ao mundo e permanece acesa no mundo, como indica o perfeito usado no texto grego. Marcos recorre à crueza da linguagem para nos fazer ver melhor o Mistério desta Luz-que-vem: «Vem a Luz para ser colocada debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não, antes, para ser colocada sobre o candelabro? Na verdade, nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,21-22). Na verdade, o Divino, o Filho Unigénito de Deus, Aquele-que-vem, passa escondido na humildade da nossa condição humana. É Ele a Luz-que-vem, que agora está escondida, mas que se manifestará no novo e último candelabro do amor de Deus (Actos 2,36), a Cruz Gloriosa, única fonte do Espírito Santo para nós (sempre Actos 2,32-33; João 19,30.34; 7,38-39). Não esqueçamos que ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). É por isso que o Filho do Homem, Aquele (o Único)-que-de-Deus-vem-e-a-Deus-volta (João 9,13) tem de (deî) ser levantado [= crucificado / ressuscitado /glorificado / exaltado] (João 3,14; cf. Filipenses 2,9): só então se saberá que «Eu Sou» (título divino) (João 8,28), e atrairei todos a Mim (João 12,32).

3. Mas agora, após o Baptismo no Jordão e a Transfiguração / Confirmação no Tabor, durante o dia que é a sua vida toda, eis Jesus passando sempre (parágôn: particípio presente durativo) (João 9,1) e executando a «obra» daquele que o enviou (João 9,4). Na sua condição de «passageiro» total, pascal, no sentido «que de Deus veio e para Deus voltava» (João 13,3), Jesus viu um cego de nascença, e os seus discípulos também viram. Mas Jesus e os discípulos não viram a mesma coisa. Os discípulos viram um cego, e por detrás do cego viram o encadeado «pecado – doença», e por detrás do encadeado viram a manifestação do Deus-garante da «ordem da retribuição». Jesus viu um cego, mas não viu naquela cegueira a manifestação de Deus; antes, viu que «era preciso» (deî) (João 9,4) aquele cego para que Deus se manifestasse nele. Jesus viu um cego e como que disse: preciso deste cego! «É preciso» (deî) que Deus se manifeste neste cego. E como é que Deus se podia manifestar naquele cego? Através das «obras» (tà érga) daquele que Ele enviou (João 9,4), fazendo passar aquele cego do domínio da cegueira para a liberdade da glória dos filhos de Deus, para usar a expressão feliz de Romanos 8,21. Sendo a Luz do mundo (João 8,12; 9,5), Jesus concede o dom da vista ao cego de nascença acompanhado do dom da Luz (Iluminação) em ordem à contemplação das coisas divinas (veja-se a propósito Hebreus 6,4-5: texto baptismal espantoso!). Atente-se bem que o cego de nascença recebeu o dom da vista e o dom baptismal da «divinização» para ver e ouvir as coisas divinas. Perante este segundo dom, também os fariseus eram cegos de nascença, e não o sabiam!

4. Significativamente, o cego recupera a vista e recebe o dom da Luz na «piscina de Siloé» (João 9,7). De notar que «piscina» se diz em grego kolymbêthra, nome que ainda hoje para a Igreja grega significa «fonte baptismal». Siloé é a grecização do aramaico shlîha, hebraico shalîah, que quer dizer «enviado». Santo Agostinho comenta, sempre de forma acertada e penetrante: «Sabeis bem quem é o enviado; se Cristo não tivesse sido enviado, nenhum de nós teria sido desviado do pecado. O cego lavou os olhos naquela fonte que se traduz “Enviado”: foi baptizado em Cristo». A «fonte baptismal» do «enviado» de Deus, daquele-que-vem-de-Deus, o Filho do Homem. O cego recobrou a vista imediatamente. A luz da fé, essa é gradual. Passa por: «não sei» (João 9,12); «é um profeta» (João 9,17); «vem de Deus» (João 9,33); «eu creio, Senhor» (João 9,38).

5. A narrativa vai abrindo cenários sucessivos. O primeiro (João 9,1-7) põe Jesus e os seus discípulos face ao cego, mostra as suas diferentes maneiras de ver, e deixa claro que é a postura criadora e redentora de Jesus que cura o cego. O segundo (João 9,8-12) mostra-nos a discussão estéril que se gera entre os vizinhos acerca do cego. Só palavras. O terceiro (João 9,13-17) traz para a cena a presença dos fariseus, que também discutem o assunto, e também não o entendem nem se entendem. O quarto (João 9,18-23) mostra a atitude dos pais que não se querem comprometer. O quinto (João 9,24-34) põe de novo em cena os judeus e o cego, que apontam os respectivos mestres: Moisés para os judeus; Jesus para o cego. Mas acerca de Jesus, dizem os judeus: «Esse não sabemos DE ONDE (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego responde com inteligência, apontando a cegueira deles: «Isso é «espantoso» (tò thaumastón): vós não sabeis DE ONDE (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! O último cenário (João 35-41) traz-nos de volta Jesus, que se revela ao cego, iluminando-o, e deixa os fariseus cada vez mais às escuras!

6. Temos todos algo a ver com o cego de nascença: os baptizados receberam como ele o dom baptismal da Luz para ver e ouvir e viver a vida divina; os catecúmenos recebê-lo-ão. Temos todos a ver com o Enviado, Aquele-que-vem: Ele é o único enviado do Pai para fazer a sua «obra»; nós somos enviados por Ele (João 20,21) para continuar no mundo a sua «obra». Mas temos de reconhecer que muitas vezes ainda vemos as pessoas e as coisas de forma bem diferente de Jesus!

7. O Primeiro Livro de Samuel 16,1-13 serve-nos hoje um texto fantástico em clara sintonia com o Evangelho. Trata-se da unção real do menor dos filhos de Jessé, David, um garoto que andava nos montes a guardar o rebanho. Nem entrava nas contas do seu pai. Teve de ser o profeta Samuel a perguntar a Jessé, depois de este lhe ter apresentado sete filhos e não ter dado sequer a entender que ainda tinha mais um: «Acabaram os teus filhos?» (1 Samuel 16,11). Só aqui é que Jessé se apercebeu que ainda tinha mais um. Mas, como David era ainda um garoto, nunca Jessé pensou que passasse por ele a escolha de Deus! A sua presença é, portanto, tão paradoxal como a do cego de nascença! Mas Deus não vê como nós. Deus vê o coração, e nele deposita o seu Espírito (1 Samuel 16,13; Romanos 5,5). Levamos este tesouro em vasos de barro… (2 Coríntios 4,7). Brilha melhor a Luz de Deus (2 Coríntios 4,6).

8. Cumpre-nos ler também hoje o grande texto da Carta aos Efésios 5,8-14. Iluminados pela Luz da Luz, que é também a Luz do mundo, somos a Luz do mundo: constatação, mas sobretudo desafio e programa! Somos, por isso, «filhos da Luz» (Efésios 5,8; 1 Tessalonicenses 5,5) – um dos termos técnicos de «divinização» – e «filhos do dia» (1 Tessalonicenses 5,5). Chamados das trevas para a luz maravilhosa de Deus (1 Pedro 2,9), devemos tornar-nos operadores das «obras da Luz», que não têm parte com as «obras das trevas». O Apóstolo [= Enviado] dá testemunho do Evangelho e continua no mundo o Evangelho. Passando como Jesus. Vendo como Jesus. Aí está a nossa missão.

9. Tempo para nos deixarmos conduzir pela mão carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom Pastor, cantando o Salmo 23(22). Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (hebraico shulhan), que é a sua mesa, serve-nos vinhos generosos…


D. António Couto, in Mesa de Palavras

Nos 499 anos do nascimento de Santa Teresa: os primeiros acordes de festa

E já se começam a ouvir os primeiros acordes de festa!

Ontem, em "La Santa" (casa onde nasceu Santa Teresa, convertida em Convento dos Carmelitas, inaugurado em 1636), foi apresentado o Hino Oficial do V Centenário do Nascimento de Santa Teresa e o Presidente da Conferência Episcopal Espanhola, Mons. Ricardo Blázquez, celebrou, em acção de graças, a Santa Missa no mesmo convento.

O presidente do episcopado espanhol convidou-nos a penetrar no imenso magistério de Santa Teresa, olhando-a como exemplo para a nova evangelização e lendo os seus escritos "Livro da Vida" e "Fundações" em paralelo com a Exortação do Papa Francisco "A Alegria do Evangelho".


Por sua vez, o Hino é uma suma bem conseguida de quem foi e é Santa Teresa para os Carmelitas e para a Igreja. Com letra de Carlos Aganzo e música de Francisco Palazón, o hino aborda a figura de Santa Teresa desde 4 perspectivas diferentes: na primeira estrofe, a sua ligação a Ávila e o seu magistério oracional na imagem do Castelo Interior; depois, é apresentada a sua actividade fundadora; em terceiro lugar, a sua vida e qualidades como escritora; por fim, uma belíssima invocação de Teresa como Doutora da Igreja, Doutora Mística.

Saibamos nós juntar-nos a esta corrente de festa e acção de graças, proclamando as maravilhas de Deus em cada ser humano e, especialmente, em Teresa de Jesus, de Ávila, da Igreja, do Mundo e para o Mundo. A ela, na comunhão dos santos, pedimos:

Teresa de Jesús, doctora de la Iglesia,
maestra de la luz, centella del amor,
enséñanos la senda por la que caminaste
con alma enamorada, buscando en ti al Señor.

Teresa de Jesus, doutora da Igreja,
mestra da luz, centelha do amor,
ensina-nos a senda pela qual caminhaste
com alma enamorada, buscando em ti o Senhor.



Links:

-Gravação do Hino pelo Coro Gregoriano de "La Santa", ontem na Missa de celebração dos 499 anos de Santa Teresa:



-Gravação do Hino pelo Coro Gregoriano de "La Santa" (uma outra  gravação da mesma música, mas com mais qualidade auditiva):



- Letra do Hino.

- Download da música

25 março, 2014

Anunciação


1. Dia 25 de Março, Dia grande, Dia solene, que reúne a Igreja inteira, Oriente e Ocidente, em celebração compacta ao seu Único Senhor, venerando a sua Mãe, na Solenidade da Anunciação do Senhor à Virgem Maria, que aponta já para o Natal do Senhor. Ainda que, de facto, separados, hoje os irmãos estão todos unidos e reunidos à mesma mesa da Graça. Dêmos, por isso, graças a Deus. No Oriente, a Anunciação do Senhor permanece um Mistério tão central que, nas rubricas do calendário litúrgico, apenas cede à Sexta-Feira Santa. No rito bizantino, a própria Vigília Pascal, caso caia no dia 25 de Março, reparte a celebração, uma parte do cânon Pascal, outra parte do cânon da Euaggelismós [= Evangelização], nome que este acontecimento recebe no Oriente.

2. O Evangelho neste Dia proclamado (Lucas 1,26-38) é um tecido sublime, que as Igrejas do Ocidente conhecem por «Anunciação», e as do Oriente por «Evangelização». Do céu chega a Alegria incandescente a casa de Maria: «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «o Senhor está contigo» (Lucas 1,28), não tenhas medo» (Lucas 1,30), diz a Maria o anjo enviado por Deus. Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos» (Mateus 28,9), «não tenhais medo» (Mateus 28,5). Aí está outra vez a harmonia da Escritura. E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!

3. O centro da cena é de Maria, que podemos ver em alta sintonia com a Palavra da Alegria que lhe chega de Deus. Ao contrário da nossa muito ocidental maneira de ver e de sentir, note-se bem que Maria não esboça qualquer reacção à presença do anjo, que tão-pouco é narrada. Ela fica perturbada é com a Palavra que lhe cai nos ouvidos e no coração (Lucas 1,29). «Conceberá no ventre» o Filho de Deus (Lucas 1,31-33). «Conceber no ventre» é um pleonasmo intencional só dito de Maria por duas vezes (Lucas 1,31 e 2,21), claramente para a pôr em pura sintonia com o Deus do «ventre das misericórdias» (Lucas 1,78). Note-se como, na sequência do texto, de Isabel só se diz que «concebeu» (Lucas 1,36). Surge então a esperada objecção de Maria: «Como será isso, se não conheço homem?» (Lucas 1,34). O anjo explica que essa concepção terá a ver com a intervenção de Deus, pois se trata do Filho de Deus (Lucas 1,35). Já atrás Maria tinha sido apresentada como «virgem casada» (parthénos emnêsteuménê) (Lucas 1,27). Não se trata de uma subtileza, mas de um estatuto jurídico em que as pessoas consagravam a Deus a sua virgindade e se dedicavam completamente a Deus. Casavam-se, não em ordem à procriação, mas à protecção mútua. Este estatuto jurídico, não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, está, porém, solidamente documentado nos últimos séculos antes de Cristo e depois de Cristo.

4. Ultrapassada a objecção, Maria responde: «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Maria responde que Sim. Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as gerações a proclamarão Bem-aventurada. É o que estamos hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor! Feliz também aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática!

5. Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de Março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em 1099 pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da actual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est[«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.

6. Já se ouve a música de Isaías 7,10-14; 8,10. O cenário é a guerra siro-efraimita, que são dois exércitos, da Síria e de Israel, que põem cerco a Jerusalém, capital do Reino de Judá, no ano 734 a. C., com o intuito de depor Acaz, rei de Judá. Já se vê um Isaías firme e confiante, que, enviado por Deus (Isaías 7,3), atravessa sem medo o cenário da guerra siro-efraimita, para levar ao amedrontado e trémulo rei Acaz (Isaías 7,2), que se encontra junto da nascente de Gihôn, a inspeccionar as águas, uma palavra de conforto e de esperança. Para significar melhor tudo isto, Isaías leva o seu filho, que ostenta um nome de esperança She’ar yashûb [= «um “resto” voltará»], pela mão (Isaías 7,3). Um pai, que ousa atravessar um cenário de guerra levando um filho pela mão, é, na verdade, testemunha de outra segurança! A mensagem que Isaías comunica a Acaz consta de quatro pontos: a) tem calma; b) não tenhas medo; c) segura-te em Deus; d) pede um sinal (Isaías 7,11). Já se sabe que o descrente Acaz não pedirá o sinal, diz ele, para não tentar a Deus (Isaías 7,12), isto é, hipocritamente alega uma razão aparentemente religiosa como paravento para esconder a sua incredulidade. Ora, pedir um «sinal», nestas circunstâncias, era sinal de fé e de humildade que reconhece a sua pobreza, como se depreende do comportamento de Abraão (Génesis 15,8), de Gedeão (Juízes 6,36-40) e de Ezequias (2 Reis 20,8-11). Marcada pela incredulidade era antes a recusa de pedir esse «sinal», como sucede com Acaz, que julga Deus incapaz de se interessar pelos nossos problemas.

7. Pouco importa. Eis que Deus dá, de igual maneira, o seu sinal: «A jovem» (‘almah TM; parthénos LXX) concebeu e dará à luz um filho a quem porá o nome de ‘immanû ’el [= «Connosco Deus»]» (Isaías 7,14). A jovem, aqui mencionada, é, em primeira leitura, certamente Abia, filha de Zacarias, esposa de Acaz, mãe de Ezequias (2 Crónicas 29,1). O filho, cujo nascimento é anunciado é certamente, em primeira leitura, Ezequias, filho de Acaz e de Abia, que ainda não tinha dado a Acaz um herdeiro. O nascimento de Ezequias parece ter ocorrido em 733, depois da guerra siro-efraimita. Todavia, como ele não é nomeado, a promessa não se esgota na pessoa de Ezequias. Abre-se ao herdeiro dinástico de qualquer tempo, portador das promessas de Deus para o seu povo. Este «filho» fica assim no campo dos «sinais», de resto como Isaías e os seus filhos (Isaías 8,18), e Mateus procede de forma correcta ao ver a promessa realizar-se em Jesus (Mateus 1,18-25). Em primeira leitura, o «sinal» dado a Acaz é que a dinastia davídica, que corria perigo em 734, se salvará. Virá mesmo um tempo de prosperidade e de paz que marcará a infância daquele menino, que se alimentará de leite coalhado e mel (Isaías 7,15), alimentos que simbolizam abundância porque são dom de Deus (Deuteronómio 6,3; 11,9; 32,13-14; Êxodo 3,8 e 17).

8. Por outro lado, antes que o menino atinja a idade da razão, portanto, dentro em breve, os reinos de Israel e da Síria, agora agressores, serão reduzidos a escombros (Isaías 7,16; cf. 8,3-4). O que acontece, de facto, sendo a Síria anexada pela Assíria ainda em 734, o mesmo acontecendo a grande parte do território de Israel, em 733. A paz e a felicidade dos dias de David e Salomão, ou mesmo do tempo dos Juízes, serão recordadas e vividas em Judá. É o que pretende dizer o oráculo: «O Senhor fará vir sobre ti […] dias tais como não existiram desde o dia em que Efraim se separou de Judá» (Isaías 7,17), ou seja, desde 926, data da morte de Salomão e da separação do Reino de Israel (Norte) da Corte de Jerusalém.

9. Logo a seguir, Isaías introduz um oráculo de desgraça sobre Judá: as águas impetuosas da Assíria virão sobre Judá e submergi-lo-ão (Isaías 8,6-8). Mas é neste novo contexto que o profeta deixa sair, por duas vezes, o desabafo: «‘immanû ’el»! (8,8 e 10). Acostagem extraordinária da salvação à desgraça! Com este suspiro, num novo contexto, a profecia do Emanuel tornou-se tradição já para o próprio Isaías. Esta tradição tem a sua história. Já não temos apenas um sentido histórico único e determinado, mas começa a história da tradição do oráculo do Emanuel que, passando por Is 9,5 e 11,1-9, chegará ao Novo Testamento (Mateus 1,23). Deus connosco sempre.

10. A toada musical que hoje embala a nossa vida está em consonância com esta avenida de sentido que atravessa a Escritura Santa. Travessia que jamais fazemos sozinhos, porque Ele está connosco sempre, e é Ele que abre a Escritura para nós (Lucas 24,32). Na verdade, canta assim o Salmo Responsorial de hoje: «Sacrifício e oblação não Te agradaram,/ mas escavaste-me os ouvidos» (Salmo 40,7). E o texto, notável, da Carta aos Hebreus cita actualizando assim: «Sacrifício e oblação Tu não quiseste,/ mas formaste-me um corpo» (Hebreus 10,5). E é assim, que vem ao nosso mundo, nascendo de Maria, para, no seu corpo e com o seu corpo, mãos, pés, entranhas, coração, inteligência, fazer a vontade de Deus (Hebreus 10,7 e 9; cf. Salmo 40,9), como está escrito acerca d’Ele no rolo antigo (Hebreus 10,7; cf. Salmo 40,8). Assim é ultrapassada a Economia antiga dos muitos sacrifícios e ofertas pela Economia nova em que somos santificados por meio da oferta (minhah) do corpo de Jesus Cristo uma vez por todas (epáphax) (Hebreus 10,10).


D. António Couto, in Mesa de Palvras

A Ordem dos Carmelitas Descalços, pelo Pe. Joaquim Teixeira

23 março, 2014

TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA: UMA QUESTÃO DE ÁGUA!


Longe vá o agoiro, mas já ouvi dizer algumas vezes que ainda há-de rebentar uma grande guerra mundial por causa da falta de água. Isso seria uma grande seca! Se visitarmos os textos bíblicos, por exemplo Ex 17- 3-7 (1ª leitura), topamos logo com um sururu dos diabos por causa da falta de água. Quando o povo saiu do Egito (onde era escravo) para voltar à sua terra (a liberdade) não faltaram cânticos festivos e gritos de alegria. Moisés era o maior! Geralmente ao princípio de qualquer coisa é sempre assim: muita esperança, muita confiança, e tudo a correr às mil maravilhas. Durante o caminho, começa a faltar isto e aquilo, o cansaço espreita, a voz já não quer cantar, surge o deserto. O alforge só tem migalhas e o cantil as últimas gotas de água. É deserto, é secura, é provação, é dúvida, é tentação e discussão (Massa e Meriba). E ali está o povo, ali está o homem, ali estou eu! Mas, sobretudo, ali está a sede. Na verdade, não consigo ficar de fora da história do povo (de Deus). Aí surge a altercação com Moisés: Tiraste-nos do Egito «para nos deixares morrer à sede»? E pouco faltou para o apedrejarem. Mas Deus também não escapou à dúvida sobre a Sua fidelidade: «O Senhor está ou não no meio de nós»? Como é que Deus reage à ingratidão do Povo? Com uma «paciência divina». Ainda bem que de um Rochedo (símbolo de Cristo) jorrou água. Deus deu a água, o povo bebeu e continuou o seu caminho, confiado no Senhor, esquecendo a terra de escravidão e os seus ídolos. Com este povo – o de Deus – quero hoje cantar: «Senhor, nós temos fome. Senhor, nós temos sede. Não é fome de pão, não é sede de água, são razões de viver o que nos falta»! Contudo, ao contrário do texto bíblico, direi: «Não porei Deus à prova». Antes, reconheço que fui baptizado na água e no Espírito Santo para continuar a abandonar a «terra da escravidão» e viver na liberdade dos filhos de Deus.

O Evangelho (Jo 4, 5-42) fala-nos do poço de Jacob, da samaritana e de Jesus. A conversa junto ao poço revelou Jesus como sendo a «Água viva» e transformou a arrogância da samaritana em súplica ardente: «Senhor, dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede». Queria sublinhar a importância do diálogo com Jesus, que poderíamos chamar oração, ou seja, «estar com Quem sabemos que nos ama». É interessante notar como, de pergunta em pergunta, a samaritana descobriu a pessoa de Cristo: No começo, Ele era somente um viajante judeu (V. 9), depois transformou-se em senhor (v. 11); depois, é um profeta (v. 19); em seguida, é o Messias (vv. 25-26); por fim, juntamente com os samaritanos, proclama-O Salvador do mundo (v. 42). Hoje fiquei pasmado e encantado com decisão da samaritana: deixou a bilha (o cântaro ou caneco) junto ao poço e correu à cidade (Sicar) para dizer aos seus o que lhe tinha acontecido. E eles vieram ter com Jesus. O «cântaro» significa e representa aquilo que nos dá acesso às propostas limitadas, falíveis, incompletas de felicidade, ou seja, à água com a qual se volta a ter sede. O abandono do «cântaro» significa romper com todos os esquemas de felicidade egoísta para abraçar a verdadeira proposta de vida. Deixar o cântaro (segurança) é abrir o meu coração à novidade de Deus.

Nesta caminhada espiritual para a Páscoa, quero renovar hoje a minha pertença ao povo de Deus (os baptizados). Quero colocar-me ao lado de S. Paulo para continuar a afirmar que «a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (2ª leitura – Rm 5, 1-2.5-8).

Santa Teresa de Jesus escreve no Livro da Vida (30, 19): «Na minha casa havia um quadro da samaritana com Jesus junto ao poço onde se lia: Senhor, dá-me dessa água! Suplicava muitas vezes ao Senhor que me desse daquela água». Eu faço hoje o mesmo pedido, dizendo: Senhor, não permitas que eu feche o meu coração – o meu verdadeiro cântaro – à vossa voz, a fim de não andar por aí a vender água sem caneco.


Agostinho Leal, ocd

17 março, 2014

O Carmelo Descalço Secular…uma vocação e uma maneira de ser Igreja




Quem são os Carmelitas Descalços Seculares?
Os Carmelitas Seculares são homens e mulheres, leigos ou sacerdotes diocesanos, que, vivendo cada um segundo o seu estado de vida, no seu ambiente familiar, social, profissional e eclesial, se sentem chamados por Deus a viverem radicalmente o Evangelho, segundo o carisma e a espiritualidade do Carmelo Descalço, fundado por Santa Teresa de Jesus.
Através do seu compromisso, pertencem juridicamente à Ordem dos Carmelitas Descalços e, juntamente, com os frades e as monjas de clausura formam uma mesma família, com os mesmos bens espirituais, a mesma vocação à santidade e a mesma missão apostólica.
Os membros do Carmelo Secular têm como vocação e missão serem “testemunhas, fortes, da experiência de Deus” mediante: a oração, como diálogo de amizade com Deus; a leitura e aprofundamento da Palavra de Deus, isto é, a Lectio Divina; a amizade, na partilha fraterna; e o apostolado, ao serviço de Deus e dos irmãos.
Os Carmelitas Seculares são cristãos comprometidos, que desejam viver plenamente a sua vocação baptismal, com a ajuda da espiritualidade do Carmelo Descalço ou Teresiano. Isto pressupõe radicalidade, responsabilidade, compromisso pessoal com Deus, com a Igreja e com a Ordem.


Qual a vocação dos Carmelitas Descalços Seculares?
Os Carmelitas Seculares são cristãos conscientes da sua vocação e do seu papel na Igreja, vivendo na doação a Deus e aos outros, como verdadeiros “Filhos da Igreja”, servindo-a, cada um, de acordo com os seus dons e talentos.
A vocação do Carmelita Descalço Secular, é a mesma vocação dos frades e das monjas: uma vocação contemplativa e apostólica, como o desejou Santa Teresa de Jesus, nossa mãe fundadora.
Mais do que “fazer”, os carmelitas são chamados a “ser” «amigos fortes de Deus» e, a partir da sua experiência de intimidade com Deus, procurar testemunhar, esta mesma experiência com os irmãos, no ambiente em que vive. Isto pressupõe uma conversão contínua, fortalecidos da Palavra de Deus, para que oração e vida não sejam opostas, mas convergentes.

Como se concretiza a vocação e a missão dos Carmelitas Descalços Seculares?
Os Carmelitas Descalços Seculares são homens e mulheres de oração no meio do mundo, das ocupações e dos compromissos diários.
Leitores assíduos da Palavra de Deus, que «é viva e eficaz» (cf. Heb 4, 12), os Carmelitas Seculares encontram nela o alimento para as suas almas, orientação para as suas vidas e inspiração para a sua oração.
Deste modo, desejam viver a caridade fraterna que está expressa nas Fraternidades a que pertencem.
Ser Carmelita Secular é uma vocação específica dentro da Igreja. É corresponder ao chamamento de Deus e viver no seguimento de Jesus Cristo, dentro da família do Carmelo Descalço, ao jeito de Santa Teresa de Jesus, nossa mãe fundadora, do nosso pai, São João da Cruz e dos outros santos da Ordem, nossos irmãos. Como conseguir realizar esta vocação? Sintetizando podemos dizer:
  • Tendo Cristo como Modelo e guia, seguindo o exemplo da Virgem Maria;
  • Pela Leitura e meditação da Palavra de Deus (Lectio Divina);
  • Buscando a união com Deus pela contemplação e actividade apostólica;
  • Dando particular atenção à oração contenplativa e litúrgica;
  • Alimentando-se da Eucaristia;
  • Tendo tempos fortes de oração: dias de deserto, retiros,…;
  • Exercitando-se no amor fraterno;
  • Tendo um forte sentido eclesial.

Não existe nenhuma novidade para além do Evangelho. Jesus Cristo foi a última Palavra de Deus à humanidade. No entanto, o Espírito Santo, que Jesus prometeu enviar aos seus discípulos, é Criador e Criativo. Por isso, ao longo da história do Cristianismo, várias figuras carismáticas da Igreja, atentas à vontade de Deus, souberam pôr em prática as inspirações do Espírito Santo, apresentando, novas formas de viver o Evangelho, para responder às necessidades dos tempos e da Igreja. O Carmelo Teresiano é, assim, um maravilhoso carisma que Santa Teresa nos legou para, em família (monjas, frades e leigos), vivermos na intimidade com Jesus Cristo e testemunharmos ao mundo o amor de Deus.

António José de Jesus (Gomes Machado), ocds 

16 março, 2014

SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA – SAIR, SUBIR E DESCER



A espiritualidade da Quaresma está marcada pela tensão positiva de alcançar o que é mais valioso para o homem: a liberdade diante das coisas e dos afectos; a posse da plenitude de si; o sonho e a força da Páscoa. Há um movimento espiritual que a palavra de Deus deste domingo apresenta em forma de convite e andamento.
O convite: «Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar» (1ª leitura), é o de esvaziar-se, despojar-se, tornar-se pobre. Esvaziar-se do vício e do pecado para nos enchermos do «homem novo», marcado pela graça; despojarmo-nos do amor ególatra e interesseiro para nos prendermos mais ao amor de compaixão, de ternura e de partilha. Este movimento de deixar o baixo modo de amar para subir até ao elevado amor de Deus, era cantado assim pelo doutor místico S. João da Cruz: «Ó meu Esposo, com esse toque e ferida de amor, não só levastes a minha alma a abandonar tudo, mas até a arrancaste e fizeste sair de si mesma» (Cântico Espiritual, 1, 20).

Este convite ao «despojamento de todas as coisas» e a «sair de si mesmo» tem a força de um andamento marcado pela confiança e abandono em Deus. Sai e deixa-te guiar, desprende-te de tudo e agarra-te a Quem te chamou. Assim o entendeu e recomendou Isaías: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Is 51, 2). É o andamento de deixar o provisório para sofrer a graça da transfiguração. Aqui, na nuvem da transfiguração (Mt 17, 1-9), situada entre o Jordão e a Cruz, a divinização mostra-se na humanidade de Cristo. Sair de ser qualquer coisa para passar a ser «filho» de Deus e herdeiro da vida eterna. Este andamento faz-se subindo ao monte Tabor, à vivência em plenitude do nosso Baptismo/Confirmação. É um andamento que requer uma elevação à divinização, isto é, à promessa da nossa transfiguração-ressurreição em Cristo.

Contudo, esta subida à estatura de Cristo «Este é o meu Filho muito amado») não termina no Tabor. É preciso descer, voltar à terra. A espiritualidade da Quaresma não é uma espiritualidade das nuvens, porque, como recorda o Papa Francisco, «à imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocuparmo-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar». Já Santo Agostinho, no sermão 78, 6, afirmava: «Desce, Pedro: querias descansar no monte, mas desce… Trabalha, sua, padece alguns tormentos para possuir a caridade, pelo candor e beleza das boas obras, o que é significado nas vestes cândidas do Senhor».

Também Paulo, como Abraão, deixou o passado e correu para o futuro (Fl 3, 13). Como Paulo, nós corremos subindo o Tabor para alcançar Quem primeiro nos alcançou e nos chamou à santidade: «Ele salvou-nos e chamou-nos à santidade» (2 Tm 1, 8b-10). O andamento da espiritualidade quaresmal vai no sentido contrário ao de Jacques Rivière, que rezava assim: «Meu Deus, afastai de mim a tentação da santidade. Não é para mim. Contentai-vos com uma vida pura e paciente que eu farei todos os esforços para vos dar. Não me priveis das alegrias deliciosas que conheci, que tanto amei, que tanto aspiro a reencontrar. Não confundais. Eu não sou da espécie que precisas. Eu sou casado e pai, sou escritor. Não me tenteis com coisas impossíveis. Perderia o meu tempo nisso, tempo que posso empregar de outra forma ao teu serviço!» (Henri Caffarel, Espiritualidade Conjugal – Uma palavra suspeita).

Hoje quero fazer uma prece de alto risco: Senhor, eu quero ser da espécie que precisas! Faz-me pobre, dai-me a fome e a sede dos Teus bens! Faz-me subir contigo ao monte Tabor! Que eu aprenda a descer até junto dos meus irmãos pelo caminho da compaixão e da partilha, porque neste espécie de descida «até os Santos ajudam». Não me livreis da tentação à santidade. Amém.


Agostinho Leal, ocd

09 março, 2014

PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA – VAMOS À LUTA


Quando faço uma viagem de carro, gosto de usar o gps. É um caminho que me leva ao lugar desejado. É uma companhia que, de vez em quando, fala para mim. É um amigo que me avisa de alguns perigos que me podem tramar a marcha e a vida.

Ao começar o tempo da quaresma, recebi um convite do papa Francisco: «Convido todo o cristão, em qualquer lugar ou situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar» (EG, nº 3). Naturalmente que eu me incluo no grupo daqueles que estão voltados para Cristo; por isso, aceitei o convite para renovar o encontro pessoal com Ele.  E, assim como o gps, quando começo a marcha, me manda para a estrada iluminada, assim também eu recorro à luz da Palavra de Deus – o gps de Deus – para que ilumine o meu pensamento, o meu coração e a minha vontade neste caminho quaresmal até ao encontro pascal com Cristo ressuscitado.

O primeiro aviso (Gen 2, 7-9; 3, 1-7) é o da obediência a Deus, Pai criador. Na história de Deus e do homem aparece sempre quem diga «não faças caso», «isso é treta», «faz o que te apetecer, pois nada é proibido». Quer dizer, haverá sempre serpentes (tentações) a desdizer a lei de Deus e a vontade de Deus. Cá por mim, continuarei a rezar: «Seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu». Vale a pena recordar a palavra de Pedro: «Importa mais obedecer a Deus do que aos homens» (Act 5, 29).

O segundo aviso lembra-me que o que eu faço acaba por ter repercussões nos outros (Rom 5, 12.17-19). Eu posso dar entrada ou fechar a porta ao pecado; eu posso ser um canal de condenação ou de salvação. «De facto, como pela obediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos».

O terceiro aviso traduz-se numa ordem: é preciso lutar. Mais do que nas tentações – e muito menos no demónio – gosto de contemplar neste Evangelho (Mt 4, 1-11) o Jesus vitorioso. Nele contemplamos o homem encravado entre a sedução das coisas do mundo e a força libertadora da graça que liberta do pecado. Job afirmou: «A vida do homem sobre a terra é uma luta» (Job 7, 1). Não há santo nenhum que não tenha lutado. Qual o inimigo a derrotar? Há inimigos internos que causam desordens: soberba, avareza, luxúria e gula; há inimigos que causam desordem no nosso ânimo: inveja, ira, preguiça. Há inimigos externos, o demónio, pessoas tentadoras, estruturas sociais injustas, etc. Cristão que não luta é um cristão vencido. Para lutar temos a graça de Deus, os sacramentos, a fuga das ocasiões de pecado, o cultivo do espírito de penitência, a prática das virtudes… Jesus saiu vitorioso das tentações. Nele e com Ele somos vencedores. A força para o combate vai-se buscar principalmente à oração: «Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme».

Nesta primeira semana da quaresma talvez alguém não saiba senão falar de jejum, penitência, sacrifícios, etc. Pessoalmente, inclino-me para um combate (uma penitência), que considero superior: dominar a (má) língua. Dizia S. João da Cruz: «É melhor vencer-se na língua do que jejuar a pão e água» (Ditos de luz e amor, nº 181). Também Fenon de Citon interpretava: «Temos duas orelhas e uma só boca, justamente para escutar mais e falar menos». E a sabedoria do povo arremata: «O mal que da tua boca sai, no teu peito cai».
Vamos à luta até à vitória da Páscoa!

Agostinho Leal, ocd

02 março, 2014

O meu país é onde os pássaros comem à mesa dos meninos



1. O dinheiro, os bens, os negócios, comer, beber, vestir, eis o que muitas vezes enche o nosso espírito e o nosso tempo. Enche e preenche, governando a nossa mente e os passos que damos. É a Mamona de Mateus 6,24, os ídolos do dinheiro e do poder, projecção dos nossos próprios egoísmos e das nossas próprias ilusões, diante dos quais nos ajoelhamos e a que prestamos o culto devido. A Mamona não ama. Motor imóvel, não se mexe, não se debruça sobre nós, não ama, não liberta, nenhum sentimento a habita. Somos nós que nos deixamos fascinar, sugar e subjugar por ela. Nesse dia, tornamo-nos escravos, invadidos, neutralizados e esterelizados. Como é diferente o Deus vivo que nos ama, e, amando-nos, nos liberta de todas as amarras. O serviço ao Deus que liberta é irreconciliável com o serviço aos ídolos que escravizam. O maior pecado que o ser humano pode cometer é o de se esquecer de que é um príncipe, deixando-se reduzir à escravidão.

 2. O Evangelho deste Domingo VIII do Tempo Comum (Mateus 6,24-34) mostra-nos enredados pela teia por nós tecida (!) dos cuidados e preocupações da nossa vida. É espantoso que deparemos por seis vezes com o verbo merimnáô (Mateus 6,25.27.28.31.34[2x]), que traduz o nosso enredo pelos bens deste mundo e pela segurança da nossa vida. Enredados, é o termo. Asfixiados e desumanizados é o resultado.

3. E Jesus diz outra vez nas alturas aquilo que só nas alturas pode ser dito e entendido: «Procurai PRIMEIRO o Reino de Deus…» (Mateus 6,33). PRIMEIRO, PRIMEIRO, PRIMEIRO…
           
4. Em sublime contraponto, aí estão as aves do céu, livres e belas e soltas, que nos falam de Deus, nosso Pai! Aí estão também os lírios do campo, que, na sua beleza, ultrapassam de longe o manto escarlate de Salomão (Mateus 6,29), e apontam para Deus, nosso Pai! Apontam para o amor. No estupendo poema do Cântico dos Cânticos, diz a Amada acerca do Amado: «Os seus lábios são lírios (shôshanîm)» (5,13). E diz o Amado da Amada: «Os teus lábios são fita vermelha» (4,3). Aí está evocada a cor avermelhada dos lírios do campo, do manto de Salomão, dos lábios rosados…

 5. Como é belo o país dos lírios do campo! Como é belo o país das aves que voam e cantam! Como é belo o país de Deus, nosso Pai! Dá-me, Senhor, a graça de poder dizer sempre com suficiente verdade e simplicidade: «O meu país é onde os pássaros/ comem à mesa dos meninos».

 6. E no imenso canto de Isaías 49,14-15, que hoje temos a graça de ouvir bater nos nossos ouvidos embotados e no nosso coração adormecido, ouvimos o queixume de Jerusalém personificada: «O Senhor abandonou-me,/ o Senhor esqueceu-se de mim» (49,14). E a belíssima resposta de Deus, nosso Pai: «Esquece uma mulher a sua criancinha de peito?/ Não faz ternura ao filho do seu ventre?/ Mesmo que elas se esquecessem,/ Eu não te esquecerei» (49,15). Mas deixem-me acrescentar o versículo 16, pois não o posso calar, dada a indizível beleza e riqueza nova do dizer de Deus, nosso Pai: «Vê: sobre as palmas das minhas mãos te tatuei» (49,16). Evoca o dizer de Deus, nosso Pai, em Isaías 43,4: «És precioso aos meus olhos, e eu amo-te!».

7. Do meio do trigo e do pão, do coração, oiço então a voz de Deus, que me dá a mão. Agarro-me. Sinto sulcos gravados nessa mão. Sigo-os com o dedo devagar. Percebo que são as letras do meu nome, os traços do meu rosto. Foi então por mim que desceste a este chão. O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
 8. Por isso, exorta-nos S. Paulo (1 Coríntios 4,1-5), nada façais por conta própria. Fazer o que quer que seja por conta própria, por exemplo, julgar-nos a nós mesmos ou aos outros, é fazê-lo sempre antes do tempo (kairós) (1 Coríntios 4,4-5). O tempo, dito kairós, supõe sempre a enchente da Palavra de Deus que nos atinge, e à qual respondemos. Ora, sem enchente da Palavra de Deus, sem Deus Primeiro, não há critério nem resposta possível. Devíamos considerar mais vezes estas coisas!

9. A melodia do Salmo 62(61), que é um Salmo de Confiança, deixa hoje a ressoar no nosso coração as notas musicais que fomos ouvindo até aqui. Confiança só no Deus vivo, minha rocha, minha fortaleza, meu refúgio,  minha salvação. E põe-nos de sobreaviso contra a «trindade» idolátrica da violência, do roubo e da riqueza. É um dos poucos Salmos citados nos Documentos do Concílio Vaticano II, no contexto de uma exortação aos sacerdotes, que soa assim: «Os sacerdotes, não apegando, de forma nenhuma, o coração às riquezas, evitem toda a cobiça e abstenham-se cuidadosamente de toda a sombra de comércio» (Presbyterorum Ordinis, n.º 17). A exortação vale para todos nós.

Deita com ternura a semente na terra
É o seu berço natural
E adormece suavemente
Tu e a semente
A semente não erra
A semente não mente
Adormece na terra
Aparece depois um fiozinho de erva
Nasce e cresce
Uma flor floresce
Um fruto amadurece
Um pássaro desce
E reza e canta e dança e debica e agradece
Ao Senhor da messe.

Senhor Jesus,
Dá-me um coração puro e transparente
Como uma nascente,
Como uma semente,
E ensina-me a ser simples e leve
Como aquele pássaro que do céu desce,
Reza, canta, come e agradece.


António Couto, in Mesa de Palavras