28 julho, 2013

O TRÍPTICO DA ORAÇÃO



1. Depois do tríptico sobre o discípulo de Jesus, que contemplámos nos últimos três Domingos (XIV, XV e XVI), em que foi proclamado, em três andamentos, o saboroso texto de Lucas 10 (o envio dos 72 discípulos; o bom samaritano; Maria que escolheu estar sentada a escutar a Palavra de Jesus), eis-nos já perante um novo belo tríptico, agora sobre a oração cristã, que não se distribui por vários Domingos, mas que entra todo pelo Domingo XVII adentro, e que Lucas nos oferece em 11,1-13.
2. O primeiro quadro deste tríptico sobre a oração pode intitular-se INTIMIDADE, e tem a sua explicitação altíssima na oração do PAI NOSSO, ensinada por Jesus aos seus discípulos (Lucas 11,1-4). Jesus é o modelo de oração oferecido aos discípulos. Por isso, aparece ao fundo da cena a rezar sozinho ao Pai (Lucas 11,1), totalmente voltado para o seio do Pai (João 1,18), completamente ocupado nas Realidades do Pai (Lucas 2,49), repousando toda a sua existência no Pai. Os discípulos vêem Jesus a rezar, mas não ousam interromper tão intensa corrente de confiança e de amor. Vêem apenas. O deslumbramento tolhe-lhes os movimentos e as palavras. Mas eis que Jesus termina a sua oração ao Pai. Então, ainda extasiado, um dos discípulos, em nome de todos – também em nosso nome –, atreveu-se a formular este pedido: «Senhor, ensina-nos a rezar como João Baptista ensinou a rezar os seus discípulos!» (Lucas 11,1).
3. E foi então que Jesus ensinou a eles e a nós, a todos, o segredo mais profundo da sua vida e da nossa vida, a orientação da sua vida e da nossa vida: para onde, melhor, para quem, devem estar sempre voltados o nosso coração, os nossos olhos, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa vida toda.
E disse: «Quando rezardes, dizei:

Pai (páter),
1. Santifica o teu Nome,
2. Venha o teu Reino,
3. Dá-nos o pão nosso (árton hêmônde cada dia,
4. Perdoa os nossos pecados,
5. Não nos deixes cair na tentação”».

4. Como bem se vê, não se trata de uma lição teórica, mas da comunicação de uma experiência, de um segredo, de uma intimidade. Rezar é orientar a nossa vida toda para Deus, a quem tratamos carinhosamente por ’Abba’, nome de radical ternura, simplicidade, verdade e dependência, tal como as crianças se dirigem ao seu pai. A oração é composta no texto de Lucas por cinco pedidos (Mateus apresenta sete: Mateus 6,9-13), sendo o do meio o do «pão nosso», dado por Deus. A questão infantil, ou científica, ou de mera curiosidade, é sempre a mesma: «O que é isto?». A nossa resposta habitual soa: «é pão». Impõe-se que nós, modernos, aprendamos e ensinemos novas notas, novas pautas, novos acordes. A resposta correcta soa assim: «É o pão que Deus nos dá» (Êxodo 16,15). De acordo com a retórica bíblica, o pedido do meio é o mais importante, é o que estrutura a inteira oração, constituindo por assim dizer a clave musical de toda a oração e relação com Deus-Pai. E aqui é preciso descer abaixo das escadarias da importância e do orgulho e das estratégias que diariamente usamos, pois é imperioso assumir a atitude evangélica das crianças: só elas sabem pedir pão com verdade e simplicidade, sem maquilhagens ou reboco de qualquer espécie!
5. O quarto pedido desta oração por Jesus rezada e vivida e a nós por Ele ensinada é sobre o perdão. Pedimos a Deus o perdão dos nossos «pecados» (Lucas 11,4a), para que, segundo o modelo de Deus, nós perdoemos as «dívidas» dos nossos irmãos (Lucas 11,4b). Na verdade, os gregos não conhecem a metáfora da «dívida» para indicar «pecado». São os hebreus que usam essa metáfora (veja-se Mateus 6,12, que usa sempre «dívidas»). Note-se, porém, a agudeza do pedido formulado por Lucas. Pedimos a Deus que nos perdoe os nossos «pecados». Mas este modelo serve para nós aprendermos a perdoar ao nosso próximo também as suas «dívidas» concretas, não apenas as ofensas morais!
6. O segundo quadro deste tríptico sobre a oração trata o tema da CONSTÂNCIA da oração, retratada imediatamente a seguir (Lucas 11,5-8), na atitude do amigo que de noite bate à porta do seu amigo, e não desiste até ser atendido. Este quadro mostra que a oração cristã não é apenas emoção passageira, mas a respiração permanente da alma, que não se extingue perante as adversidades, nem sequer durante a noite.
7. O terceiro quadro deste tríptico trata o tema da EFICÁCIA da oração (Lucas 11,9-13): «Pedi e ser-vos-á dado, procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á». Entenda-se, todavia, que se trata de uma eficácia que não tem de responder directamente aos cânones do que esperamos obter, aos desejos que formulamos, mas sim aos planos de Deus, que devemos saber acolher com humildade e prontidão. Como refere o poeta libanês K. Gibran, «Deus não escuta as nossas palavras, se não é Ele próprio a pronunciá-las com os nossos lábios».
8. Essencial é saber que dirigimos sempre a nossa oração ao Pai, que dá sempre o melhor aos seus filhos. E é grandemente significativo que o verbo REZAR, que aparece no tríptico três vezes (Lucas 11,1[2 x] e 2), apareça praticamente traduzido por PEDIR, que contamos no texto cinco vezes (Lucas 11,9.10.11.12.13), e cujo corolário é DAR, com nove menções no texto (Lucas 11,3.7.8[2 x].9.11.12.13[2 x].
9. Feita esta explicitação vocabular, salta à vista a importância dada à oração de súplica. Todos sabemos que a oração de súplica é muitas vezes vista como uma forma secundária de oração, quase como um subproduto, quando comparada com a oração de louvor ou de acção de graças. Ora, este tríptico diz-nos que, de acordo com Jesus, REZAR é PEDIR, é mesmo só PEDIR. Aprofundando um pouco, compreendemos então que PEDIR é próprio do filho. E é como Filho que Jesus REZA, e é, portanto, no lugar de filhos, e, por consequência, de irmãos, que Jesus nos quer colocar. Por isso também nos ensina a REZAR, dizendo: «Pai…». E também já sabemos que o Filho é aquele que recebe tudo do Pai, sendo o Pai aquele que dá tudo ao Filho.
10. Coloquemo-nos então no nosso lugar correcto: o de filhos, que tudo recebem do Pai, e tudo partilham como irmãos. E compreendamos bem que, para recebermos tudo, não podemos possuir nada! Se possuirmos alguma coisa, já não podemos receber tudo! Impõe-se que temos de ser radicalmente pobres, filhos e irmãos! Só assim podemos começar a REZAR.
11. O contraponto musical de hoje vem do Livro do Génesis 18,20-32. Abraão é visto no papel do orante que negoceia com Deus a salvação de Sodoma. A sequência da intercessão de Abraão lembra o procedimento habitual nos mercados do Mádio Oriente, em que o cliente faz tentativas sucessivas para baixar o preço do produto que pretende adquirir. Abraão faz seis tentativas: começa por propor 50 justos pela salvação de toda a cidade; passa depois para 45, depois para 40, depois para 30, depois para 20, finalmente 10. Vê-se que não havia nenhum, e a cidade, com todos os seus habitantes, é destruída (Génesis 19,24-25). Mas fica deste aqui já em aberto que, para poder atender a oração de Abraão e a nossa, terá Deus de enviar ao nosso mundo um justo verdadeiro, «Jesus Cristo Justo» (1 João 2,1). É Ele o nosso Redentor e Salvador.
D. António Couto, In Mesa de Palavras

23 julho, 2013

As Bodas do Cordeiro



14 de Setembro de 1940

“Venerunt nuptiae Agni et uxor eius praeparavit se”[1] (Ap 19, 7). “Chegaram as núpcias do Cordeiro e a sua esposa está preparada”. Estas palavras soaram de modo tão belo no nosso coração na véspera da nossa profissão, e assim devem ressoar novamente quando renovemos solenemente os nossos santos votos. Palavras cheias de mistério que escondem o sentido, profundo e misterioso, da nossa sagrada vocação. Quem é o Cordeiro? Quem é a esposa? De que banquete de bodas se fala aqui?
“Olhei e vi no meio do trono, dos quatro viventes e dos anciãos, um Cordeiro de pé, como que imolado” (Ap 5, 6). Quando o vidente de Patmos contemplou esse rosto, ainda estava viva nele a recordação daquele inesquecível dia junto do Jordão, quando João Baptista lhe mostrou o “Cordeiro de Deus” que “tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Naquele momento tinha compreendido a palavra e agora compreendia a imagem. Aquele que antes caminhava junto do Jordão, e tinha-se manifestado agora com vestes brancas, com olhos de chamas de fogo e com a espada do Juiz, o “Primeiro e o Último” (Ap 1, 18). Ele cumpriu perfeitamente o que os ritos da Antiga Aliança manifestaram simbolicamente.
Quando no dia mais solene e santo do ano, o Sumo-sacerdote entrava no Santo dos Santos, no sacratíssimo lugar da presença de Deus, tomava dois cabritos: um, para carregar com os pecados do povo e levá-los para o deserto; o outro, para aspergir com o seu sangue o Tabernáculo e a Arca da Aliança (Lv 16). Esse era o sacrifício de expiação pelo povo. Além disso, o Sumo-Sacerdote tinha que sacrificar um novilho por ele próprio e pela sua casa e oferecer um carneiro em holocausto. Com o sangue do novilho tinha que aspergir também o Trono da Graça. Quando o sacerdote, escondido aos olhos dos homens, tinha orado por si próprio, pela sua casa e por todo o povo de Israel, saia fora, onde estava o povo à espera, e aspergia o altar para expiar os seus pecados e os do povo. Enviava depois o cabrito vivo para o deserto, oferecia o seu próprio holocausto e o do povo, e queimava os restos do sacrifício expiatório diante do acampamento (mais tarde, diante das portas da cidade).
O dia da Reconciliação era também um dia solene e sagrado. O povo permanecia em oração e jejuava no Santuário. Quando ao entardecer tudo se tinha cumprido, havia paz e alegria no coração, porque Deus tinha tirado o peso do pecado e havia dado a sua graça. Mas, o que tornou possível essa reconciliação? Certamente que não foi nem o sangue dos animais degolados, nem o Sumo Sacerdote da descendência de Aarão, – isto esclareceu-o bem S. Paulo na carta aos Hebreus –, mas a verdadeira vítima de reconciliação, prefigurada em todas as anteriores vítimas prescritas pela lei, e o Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec, em cujo lugar estavam os sacerdotes da casa de Aarão. Ele era também o verdadeiro Cordeiro Pascal, em nome do qual passou ao lado o anjo exterminador diante das casas dos hebreus, quando castigou os egípcios. O próprio Senhor explicou isto aos seus discípulos quando comeu com eles o Cordeiro Pascal pela última vez, e se entregou a si mesmo como alimento.
Mas, porque escolheu o Cordeiro como símbolo preferido? Porquê se mostrou ele ainda desse modo no trono da glória eterna? Porque estava livre de pecado e era humilde como um cordeiro; e porque tinha vindo para se deixar levar como cordeiro ao matadouro (Is 53, 7). João presenciou também tudo isto quando o Senhor se deixou prender no Monte das Oliveiras e depois se deixou cravar no Gólgota. Ali, no Gólgota, se cumpriu o verdadeiro sacrifício de reconciliação. A partir de então os antigos sacrifícios perderam a sua eficácia; e em breve desapareceram totalmente, assim como o antigo sacerdócio, quando o Templo foi destruído. João presenciou tudo isto de perto. Por isso, não lhe assombrava ver o Cordeiro no Trono. E porque foi uma testemunha fiel dele, foi-lhe mostrada também a Esposa do Cordeiro.
“Viu a cidade santa, a nova Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como uma noiva que se adornou para o seu esposo” (Ap 21, 2 e 9 ss). Assim como Cristo desceu do céu à terra, assim a sua esposa, a Santa Igreja, tem também a sua origem no céu: nasceu da graça de Deus e com o Filho de Deus desceu do céu, de modo que está unida a Ele indissoluvelmente. Foi construída com pedras vivas; a sua pedra angular foi colocada quando a Palavra de Deus assumiu a natureza humana no seio da Virgem. Nesse momento, a alma do Divino Menino e da Virgem Mãe estavam enlaçadas com o vínculo da mais íntima união, que hoje chamamos desposório.
A Jerusalém celeste, escondida aos olhos do mundo, veio à terra. Dessa primeira união esponsal nasceram todas as pedras vivas que edificaram a poderosa construção, quer dizer, cada alma chamada à vida pela graça. A Mãe-Esposa chegaria a ser a Mãe de todos os redimidos, e, como a célula fecunda, da qual surgem sempre novas células, construiria ela a cidade viva de Deus. Este mistério escondido foi revelado a S. João quando estava com a Virgem Mãe ao pé da Cruz e foi entregue a ela como filho. Ali começou a Igreja a existir visivelmente: tinha chegado a sua hora, mas não ainda a sua perfeição. Ela vive, está desposada com o Cordeiro, mas a hora do banquete nupcial festivo chegará somente quando o dragão for definitivamente vencido e os últimos dos redimidos tenham travado o seu combate até ao fim.
Assim como o Cordeiro teve que ser imolado para ser elevado sobre o trono da glória, assim o caminho da glória conduz, por meio do sofrimento e da Cruz, a todos os eleitos para o banquete das bodas. Quem quiser desposar o Cordeiro tem que se deixar cravar com ele na Cruz. Para isto são chamados todos os que foram marcados com o sangue do Cordeiro, e estes são todos os baptizados. No entanto, nem todos compreendem esse chamamento e o seguem. Existe um chamamento a um seguimento mais estreito, que ecoa mais penetrante no interior da alma e que exige uma resposta clara. É o chamamento à vida religiosa, e a resposta são os santos votos.
 Naquele a quem o Senhor chama a deixar os vínculos naturais (família, povo, ambiente), para se entregar somente a Ele, destaca-se o vínculo nupcial com o Senhor com mais força do que na multidão dos redimidos. Têm de pertencer, de modo preferencial, por toda a eternidade ao Cordeiro, segui-lo por onde quer que vá e cantar o hino das virgens que mais ninguém pode cantar (Ap 14, 1-5).
Quando desperta na alma o desejo da vida religiosa é como se o Senhor pedisse a sua mão em desposório. E  se ela se consagra a Ele através dos santos votos e acolhe o “Veni, sponsa Christi”[2], antecipa-se o banquete das bodas celestes. No entanto, trata-se aqui só da espera do alegre banquete eterno. O gozo nupcial da alma consagrada a Deus e a sua felicidade têm que acreditar-se nos combates, abertos ou escondidos, e no quotidiano da vida religiosa. O esposo escolhido por ela é o Cordeiro que foi imolado. Se quiser entrar com Ele na glória celeste tem que se deixar cravar ela própria na sua Cruz. Os três votos são os cravos. Quanto com maior disposição se estenda sobre a Cruz e suporte pacientemente os golpes de martelo, tanto mais profundamente experimentará a realidade de estar unida com o Crucificado. Assim, o facto mesmo de estar crucificada, será para ela a festa das bodas.
O voto de pobreza abre as mãos para que deixem cair tudo o que as mantém atadas. Sujeita-as de tal maneira que já não podem tender para as coisas deste mundo. Além disso, ordena as mãos do espírito e da alma: os apetites que se inclinam sempre para os prazeres e os bens materiais; as preocupações que pretendem assegurar a vida terrena em todas as suas dimensões; o activismo que se ocupa em muitas coisas, pondo assim em perigo a dedicação ao único necessário. Uma vida na abundância e a comodidade burguesa contradiz o espírito da santa pobreza e afasta-nos do pobre crucificado. As nossas irmãs, nos primeiros tempos da Reforma[3], sentiam-se felizes quando lhes faltava o necessário; quando as dificuldades tinham sido superadas, e tinham de tudo em abundância, temiam que o Senhor se apartasse delas. Algo não funciona bem numa comunidade conventual se as preocupações exteriores toma tanto tempo e forças para si que se ressente a vida interior. E algo não está de todo em ordem na alma de cada religiosa, em particular, se começa a ocupar-se de si mesma e a preocupar-se em satisfazer os seus desejos e inclinações, em vez de se abandonar à Divina Providência e aceitar agradecida o que ela envia através das irmãs responsáveis. Naturalmente, com isso não se exclui que se dê a conhecer aos superiores sobre o que exige a obrigatória consideração da saúde. Porém, uma vez feito isto, devemos libertar-nos de toda outra preocupação. O voto de pobreza pretende dar-nos a despreocupação das aves e dos lírios, para que o espírito e o coração fiquem livres para Deus.
A santa obediência sujeita os nossos pés para que já não andem mais pelos seus próprios caminhos, mas pelos caminhos de Deus. Os filhos deste mundo chamam liberdade ao não estar submetidos a nenhuma vontade alheia e a que ninguém os impeça de satisfazer os seus desejos e inclinações. Por essa liberdade lançam-se a sangrentos combates e sacrificam todos bens e a vida. Os filhos de Deus entendem diferentemente a liberdade: querem seguir sem estorvos o Espírito de Deus; e sabem que os maiores obstáculos não vêm de fora, mas estão alojados em nós mesmos. A razão e a vontade do homem, que gostosamente querem ser seu próprio senhor, não se apercebem de quão facilmente se deixam seduzir pelos apetites naturais e convertem-se em seus escravos. Não há melhor caminho para libertar-nos dessa escravidão e tornar-nos dóceis à direcção do Espírito Santo do que o caminho da santa obediência.
“Na obediência é onde a alma se sente realmente livre”, assim faz dizer Goethe à heroína de um dos seus poemas, que estão fortemente impregnados do espírito cristão. A autêntica obediência não consiste somente na não transgressão externa das prescrições da Santa Regra e das Constituições, ou das ordens dos superiores. Tem que converter-se numa renúncia à própria vontade. Por isso, o que obedece não estuda a Regra e as Constituições para descobrir subtilmente quantas das assim chamadas “liberdades” se lhe permitem ainda, mas para descobrir cada vez melhor quantos pequenos sacrifícios e oportunidades se lhe oferecem cada dia e cada hora para progredir na renúncia de si mesmo. Toma tudo isto sobre si como um jugo suave e uma carga leve, pois sente-se, através deles, mais estreita e profundamente unido ao Senhor, que foi obediente até à morte de Cruz. Os filhos deste mundo consideram esta maneira de agir inútil, irracional e mesquinha. O Salvador, que realizou durante trinta anos o seu trabalho quotidiano na base de tais pequenos sacrifícios, julgará de outro modo.
O voto de castidade procura libertar o homem de todos os vínculos naturais, para o sujeitar à cruz por cima de toda a agitação e libertar o seu coração para a união com o Crucificado. Um tal sacrifício não se leva a cabo de uma só vez. Pode-se estar muito bem apartado exteriormente das ocasiões que conduzem à tentação, e, no entanto, na memória e na fantasia permanecem ainda muitas coisas que podem perturbar o espírito e tirar a liberdade ao coração. Existe, além disso, o perigo de que no interior dos muros protegidos do convento surjam novas ataduras que impeçam a total união com o divino coração.
Com a nossa entrada na Ordem convertemo-nos novamente em membros de uma família. Devemos ver e honrar em nossas superioras e irmãs como cabeça e membros do corpo místico de Cristo. Contudo, somos humanos e pode acontecer que se misture com o amor santo, infantil e fraterno, algo demasiado humano. Cremos ver nos humanos a Cristo e não nos damos conta que nos apegamos humanamente a eles e corremos o perigo de perder de vista a Cristo. Pois bem, a inclinação humana não turba apenas a pureza do coração. Pior ainda que um demasiado amor humano é um demasiado pouco amor ao divino coração. Cada aversão, cada enfado, cada rancor que toleramos ao nosso coração fecha as portas ao Salvador. As emoções involuntárias apresentam-se, naturalmente, sem culpa nossa; mas logo que as consentimos temos que tomar inexoravelmente partido contra elas; caso contrário pomo-nos contra Deus, que é Amor, e trabalhamos em proveito do adversário. O hino que as virgens cantam no séquito do Cordeiro é seguramente o canto do mais puro amor.
A Cruz eleva-se novamente diante de nós. Ela é o sinal de contradição. O Crucificado contempla-nos desde ela: “Quereis vós também abandonar-me?” O dia da renovação dos votos tem que ser sempre um dia de um sério exame pessoal. Fomos consequentes com o que fervorosamente professamos? Vivemos como convém a esposas do Crucificado, do Cordeiro que foi imolado? Nos últimos meses ouvimos a miúdo queixas de que as muitas orações pela paz não surtiram ainda nenhum efeito. Que direito temos nós a ser atendidas? O nosso desejo de paz é, sem dúvida, autêntico e sincero. Mas, nasce de um coração totalmente purificado? Rezamos verdadeiramente “no nome de Jesus”, quer dizer, não só com o nome de Jesus na boca, mas no espírito e no sentir de Jesus, buscando a glória do Pai e não a nossa? No dia em que Deus tenha poder ilimitado sobre o nosso coração, teremos também nós poder ilimitado sobre o seu. Se tivermos isto presente, nunca teremos o valor de condenar a nenhum homem. Contudo, também não devemos desanimar se depois de muito tempo de vida religiosa tivermos que nos dizer a nós mesmas que ainda somos aprendizes e inexperientes. A fonte do coração do Cordeiro não se esgotou. Ainda hoje podemos lavar ali as nossas vestes como um dia o fez o bom ladrão no Gólgota. Confiando na força reparadora dessa sagrada fonte prostramo-nos diante do Trono do Cordeiro e respondemos à sua pergunta: “Senhor, a quem iremos? Só tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68). Deixa-nos tirar àgua das fontes da salvação para nós e para todo este mundo sedento. Concede-nos a graça de poder pronunciar com um coração puro as palavras da esposa: Vem, vem, Senhor Jesus! Vem depressa!

Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein)


[1] N. d. t.: Edite Stein como grande amante da língua latina cita continuamente textos nesta língua. Respeitamos tal uso. Sempre que ela própria não ofereça a tradução, dá-la-emos em nota.
[2] N. d. t.: “Vem, esposa de Cristo”.
[3] N. d. t.: refere-se aqui à Reforma da Ordem do Carmo levada a cabo por Santa Teresa de Jesus: o Carmelo Teresiano.

22 julho, 2013

O tempo


Uma criança perguntou timidamente ao pai quando este regressava do trabalho:
— Pai, quanto é que ganhas por hora?
O pai, friamente, respondeu:
— Para que queres tu saber? São dez euros por hora.
— Então, pai, poderias emprestar-me três euros?
— Ah! É por isso que queres saber quando ganho por hora?! Vai para a cama e não me aborreças mais!
Daí a bocado, o pai começou a pensar no que tinha acontecido e sentiu-se culpado. Talvez o filho necessite de comprar algo. Entrou no quarto e perguntou-lhe baixinho:
— Filho, já estás a dormir?
— Não, pai.
— Olha, aqui tens os três euros que me pediste.
— Muito obrigado, pai. Depois a criança levantou-se, foi buscar os sete euros do mealheiro e disse ao pai:
— Agora já tenho dez euros! Pai, podias vender-me uma hora do teu tempo? 

21 julho, 2013

JESUS, MARTA E MARIA E EU


1. Imediatamente a seguir ao belo trabalho de amor do Bom Samaritano (Lucas 10,25-37), apresentado como figura do discípulo de Jesus, eis-nos a braços com outra cena de excepção do Evangelho de Lucas: Jesus, Marta e Maria (Lucas 10,38-42), que continua a expor diante de nós, neste Domingo XVI do Tempo Comum, traços salientes para continuarmos a compor a figura do discípulo de Jesus.
2. A primeira anotação do narrador é para nos comunicar que, estando Jesus em viagem, uma mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa (Lucas 10,38). Acrescenta logo que Marta tinha uma irmã, chamada Maria (Lucas 10,39), e começa de imediato a desenhar o retrato das duas irmãs.
3. De Maria, diz-nos que se SENTOU aos pés de Jesus e que ESCUTAVA a sua Palavra (Lucas 10,39). O leitor apercebe-se de imediato que Maria assume a figura de discípula atenta, dedicada e deliciada: SENTADA perto do Mestre, ESCUTAVA… O narrador usa outras tintas para pintar o retrato de Marta. Começa por nos dizer que andava DISTRAÍDA (verbo gregoperispáô) com muito trabalho (Lucas 10,40). Aproximando-se, porém, disse a Jesus com um certo ar de reprovação: «Senhor, a ti não te importa que a minha irmã me deixe sozinha a trabalhar?» (Lucas 10,40). E sem esperar pela resposta, como quem está cheia de razão, acrescenta logo, como quem tem autoridade para dar ordens até a Jesus: «Diz-lhe, pois, que me venha ajudar!» (Lucas 10,40). É aqui que intervém Jesus, com a sua Palavra serena e soberana, para lhe dizer: «Marta, Marta, andas PREOCUPADA (verbo grego merimnáô) e ÀS VOLTAS (verbo gregothorybázô) com MUITAS COISAS (pollá), quando UMA SÓ (henós) é necessária» (Lucas 10,41-42). E conclui, para total espanto nosso e de Marta: «Maria ESCOLHEU (eklégomai) a parte BOA (e bela), que não lhe será tirada» (Lucas 10,42).
4. Importa ver já, com clareza, que Maria não diz uma palavra em todo o episódio. Não se ouve a sua voz. Ela está tranquilamente SENTADA e totalmente concentrada na ESCUTA de outra VOZ, que não a sua. Maria é a mulher de UMA COISA e de UMA PESSOA. Por isso, na base da sua vida, tem de haver uma ESCOLHA. Nas páginas da Escritura Santa, é normalmente Deus o sujeito do verbo ESCOLHER. Quando também nós ousamos ESCOLHER, então já se percebe que deixamos muitos mundos para trás e que nasce em nós um mundo novo, por acostagem ao mundo de Deus.
5. Marta começa por receber Jesus na casa dela. É a senhora dona Marta. Olha de soslaio para a sua irmã Maria que acusa de não fazer nada, e repreende Jesus por não se importar com isso, e acaba mesmo dando ordens a Jesus, para que, por sua vez, dê ordens a Maria para a ir ajudar. É a senhora dona Marta. Manda, ou pensa que manda, em casa, na sua irmã e em Jesus!
6. A sua vida é uma azáfama, anda às voltas, ocupada por preocupações e preconceitos, descentrada e desconcentrada. O seu fazer é tradicional e convencional. Nunca ESCOLHEU. O narrador diz-nos que anda DISTRAÍDA, e Jesus diz-lhe que anda PREOCUPADA (merimnáô) e ÀS VOLTAS (thorybázô)… Vocabulário importante. Um pouco adiante, Jesus adverte os seus discípulos para não se PREOCUPAREM (merimnáô) com a vida, quanto ao que hão-de comer, nem com o corpo, quanto ao que hão-de vestir (Lucas 12,22), e acrescenta logo que isso – afadigar-se com o que comer, beber e andar freneticamente, de lado para lado, como meteoritos (meteôrízô) – são coisas dos pagãos! (Lucas 12,30). E põe-nos diante dos olhos este tesouro evangélico e poético: «Considerai os lírios do campo, que não fiam nem tecem!…» (Lucas 12,27).
7. Ressalta deste finíssimo quadro que também o agitar-se por Deus ou pelo próximo pode ser coisa pagã. Não necessariamente por ser pagão o objecto da busca, mas por ser pagão o modo de procurar: com afã, inquietação, agitação! Na verdade, as «muitas coisas» podem viciar, não apenas a escuta, mas também o verdadeiro serviço. Fazer muito pode ser sinal de amor, mas pode também fazer morrer o amor! Ao hóspede é necessário oferecer companhia, não apenas coisas!
8. Ao contrário da senhora dona Marta, que nunca abriu mão da sua condição de dona, Maria percebeu bem que não é dona, mas simplesmente hóspede. Não da sua irmã Marta, mas de Jesus. Maria está, na verdade, hospedada em casa de Jesus. Por isso, está assim serena e tranquila. Entregou-lhe tudo: o coração, as mãos, os olhos, o cofre, a chave do cofre, a chave de casa. Marta não é apresentada como sendo má pessoa, mas não compreendeu que, quando Jesus entra em nossa casa, é dele a casa, e nós simplesmente seus hóspedes, tranquilamente sentados junto dele! Ai esta nossa entranhada tentação patronal!
9. Dizia um velho rabino acerca de um seu colega: «anda de tal modo ocupado com as COISAS de Deus, que até se esquece de que ELE existe!». Convenhamos que se trata de um esquecimento desastroso…
10. Veja-se bem a simplicidade, a prontidão e a candura desarmantes do velho Abraão do Antigo Testamento de hoje! (Génesis 18,1-10).
D. António Couto, In Mesa de Palavras

16 julho, 2013

SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DO CARMO


Queridos irmãos e irmãs carmelitas, é com profunda alegria e esperança que
me dirijo a todos vós neste dia da Solenidade da nossa Mãe e Irmã, a Senhora do
Carmo.
A alegria da mãe resulta da alegria e felicidade dos seus filhos. Como
carmelitas, pedimos muitas vezes a Maria que «nos seja propícia, que nos conceda
graças e privilégios», mas também a Virgem Mãe nos dirige muitas vezes os seus
pedidos. Que me está a pedir nesta encruzilhada da história a Virgem Maria? Que
Carmelita leigo, consagrado ou sacerdote espera que eu seja? Que alegrias tenho
para dar à Virgem Maria, esposa de José? Como bom filho que quero ser, não fico
indiferente às alegrias e tristezas de tão boa Mãe.
Alegramos Maria quando fizermos o que Jesus nos disser (Jo 2, 5). As alegrias
de Maria são as mesmas do Seu Filho Jesus. A fidelidade no seguimento é fonte de
alegria para todos os discípulos. E o Autor de toda esta obra, o guia do caminho, é o
Espírito Santo que sempre foi o guia da Virgem Mãe e inspirador de todas as suas
obras! D’Ela disse o nosso Pai S. João da Cruz: “Eram assim as [obras] da
gloriosíssima Virgem Nossa Senhora, a qual, estando desde o princípio elevada neste
alto estado, nunca teve gravada na sua alma forma alguma de criatura, nem se
moveu por ela, mas foi sempre movida pelo Espírito Santo (S III, 2, 10).
O Espírito continua a sua acção. Os ventos deste momento histórico pedemnos
renovação e revitalização. Já não aguentamos, nem temos que aguentar,
estruturas do passado porque já não respondem às necessidades dos nossos
tempos. Para vinho novo, odres novos (Mc 2, 22). Nós que nos revestimos do manto
da Virgem Mãe do Carmo, sob a forma de hábito ou escapulário, somos também
revestidos do Espírito que a cobriu com a sua sombra. E é sob a acção do Espírito
que podemos deixar a inércia, o nosso estilo morno de vida e nos aventurarmos nos
caminhos da conversão radical e profunda; de contrário, impediremos o kairós que
está constantemente a bater à nossa porta (Cf. Ap 3, 20). Sopremos a cinza para
que a chama do Espírito que ainda fumega não se apague. Do pouco, Deus pode
fazer muito, reacendendo esta chama do Espírito nos nossos corações. Todos nós,
protegidos, acolhidos e amados por Maria, sentimos a chama da fé que ainda dá luz
e calor, que não se apagou, mas está à espera de ser refrescada pela Palavra, pelo
reencontro com Jesus na Eucaristia e na Reconciliação, pelo contacto com a Chama
Viva de Amor que ardia no coração dos nossos fundadores, Teresa e João da Cruz.
Não deixemos extinguir o Espírito! (1 Tes 5, 19)
Sob o olhar terno e materno de Maria, nossa Mãe, podemos identificar e
interpretar com realismo e esperança os desafios do nosso tempo. Aponto três
desafios e coloco-os em paralelo com alguns quadros da vida da Virgem Maria que
nos poderão servir de guia e inspiração à sua resposta.
Em primeiro lugar, temos o desafio da simplicidade e humildade; para tal,
contemplemos Maria, rezando o seu cântico de Magnificat. No seu cântico de louvor,
a Virgem Maria, cheia do Espírito Santo, constata como o Senhor «derrubou os
poderosos de seus tronos e exaltou os humildes». Penso que os nossos tempos
pedem-nos uma vida mais pobre e mais simples, mais próxima dos pobres,
literalmente falando. O Papa Francisco não se cansa de nos convidar para as
periferias. Ora, se nos deixamos invadir pelo Espírito, a nossa vida tornar-se-á pobre
e próxima dos pobres, como a da Virgem Maria. A grande acção do Espírito é
empobrecer para nos encher das riquezas de Deus. Estamos no grupo dos poderosos
a derrubar ou dos humildes a exaltar? Esta profecia revolucionária de Maria é sinal
de esperança para os desempregados, emigrados, injustiçados dos nossos tempos
com os quais queremos percorrer os necessários êxodos para atingir a liberdade e
dignidade de filhos. Só um coração derrubado do seu orgulho pelo Espírito,
empobrecido por Ele, tornado pobre e humilde, se torna companheiro de viagem de
todos os pobres e humildes deste mundo e dispensador para eles de todos os bens
materiais e espirituais.
A seguir, o desafio da conversão à comunidade; para tal, contemplemos Maria
reunida com os discípulos no Cenáculo, em oração (Act 1,14). Os nossos tempos
pedem-nos que sejamos construtores de comunidades coesas e bem alicerçadas. Só
o Espírito une e cria comunhão! Estes tempos de desnorte que absolutizam os
egoísmos em detrimento do bem comum, exigem dos cristãos a conversão à
comunidade, à proximidade e relação com os que nos são naturalmente mais
próximos: a família, a fraternidade dos carmelitas seculares, a comunidades
religiosas das irmãs e irmãos carmelitas. A todos nós se nos pede que
acompanhemos estas comunidades de base e de referência. A nossa família
carmelita é uma grande comunidade de comunidades, onde cada pessoa se sente
apoiada e desafiada a crescer como crente e como carmelita. Acolhamo-nos sob a
protecção de Maria, nossa Mãe e, como outrora no Cenáculo, imploremos
incessantemente com Ela, a vinda às nossas comunidades, do Artífice da Comunhão.
Para isso, Cristo e a Virgem Maria, Sua e nossa Mãe, sempre nos estão a convidar
para a mesa da eucaristia a partir da qual se recebe o Espírito e se reconstrói e
renova a comunidade. Aceitemos o seu convite.
Em terceiro lugar, o desafio da missão; neste sentido, contemplemos Maria
que caminha apressadamente para as montanhas, sob o impulso do Espírito que
n’Ela havia descido na Anunciação. Os nossos tempos convidam-nos à
evangelização, que é sempre antiga e sempre nova, com propostas claras de vida
espiritual, mediante o acolhimento, o testemunho e a proposta de formação de
carmelitas e comunidades orantes; mediante o atendimento na reconciliação e no
acompanhamento espiritual, nas ofertas de iniciativas de mistagogia e pedagogia da
oração. A nova evangelização é a grande obra-prima do Espírito! Pede a criatividade
e ardor que nascem da experiência de Deus que nos permite ir ao encontro das
necessidades pastorais dos que estão perto, e já pertencem ao rebanho, mas
também dos que estão longe geográfica ou espiritualmente. Neste tempos
abraçamos de forma explícita a missão ad gentes com os projectos fundacionais em
Angola e Timor Leste. Maria possuída pelo Espírito tornou-se enviada e missionária e
por isso é nosso modelo. Ela correu apressadamente para as montanhas para ir ao
encontro de Isabel para lhe levar a sua alegria e lhe prestar os seus serviços.
Deixemo-nos tomar pela alegria e a pressa do Espírito, que não tem tempo a perder,
pois o cristão e o carmelita são estruturalmente missionários, estão sempre a sair e
a partir ao encontro dos que ainda não experimentaram a alegria do encontro com o
Deus vivo.
Que ao celebrarmos a Solenidade de Maria, Alegria e Formosura do Carmelo,
regressemos às fontes mais genuínas da nossa vocação e missão, para que movidos
em tudo pelo Espírito, como Maria, nossa Mãe, sejamos úteis e significativos nesta
Igreja e neste mundo.
Fátima, 16 de Julho de 2013
Pe Joaquim Teixeira, prov.

14 julho, 2013

AMARÁS, AMARÁS, AMARÁS!


1. «Sou a personagem mais popular do Evangelho. Vós falais muitas vezes de mim: há vinte séculos que oiço o vosso aplauso por ter puxado o freio com que parei o cavalo naquela estrada que seguia de Jerusalém para Jericó. Ofereci imagens consoladoras à vossa emotividade e ao vosso gosto inato de histórias com um final feliz: a minha figura debruçada a colocar faixas, as gotas de óleo e vinho derramadas sobre as feridas do viandante maltratado pelos ladrões e traído por aqueles dois que pouco antes me precederam naquela estrada e lhe tinham negado a sua piedade, o facto de eu ter colocado o ferido sobre a minha montada, a pousada com o hospedeiro a quem entrego dois denários para ele continuar a assistência. E vós, para me honrar, ornamentastes com estas cenas as entradas dos albergues e lugares piedosos». É assim que o escritor italiano Luigi Santucci (1918-1999) abre o seu Samaritano apocrifo, deixando transparecer alguma ironia.
2. Concentrando agora a nossa atenção sobre a parábola do Evangelho de Lucas (10,25-37), é impressionante notar que o narrador não tenha necessitado de mais de cem palavras (incluindo artigos e partículas gramaticais) para criar um quadro inesquecível!
3. Um HOMEM, anónimo e solitário, percorre os 27 km da estrada romana que, serpenteando através do Wadi el-Kelt, ligava a Cidade Santa (Jerusalém) ao belíssimo oásis de Jericó, tradicional morada de sacerdotes, superando um desnivelamento de cerca de 1100 metros. De improviso, na paisagem inóspita e desértica daquela estrada, o cenário habitual: BANDIDOS que saltam da emboscada, roubo, violência, fuga. Fica na berma da estrada um corpo ensanguentado, com a guarda de honra das rochas vermelhas dos montes circundantes, ditos em hebraico de Adummîm, tradução literal: «do sangue». Tudo envolto num gritante silêncio.
4. Mas eis, ao longe, um SACERDOTE… Súbita desilusão. O narrador refere que o SACERDOTE bem viu o nosso homem, mas «passou pelo lado contrário» (antiparêlthen). Evitou demoras, chatices, incómodos, impureza ritual. Eis, todavia, no horizonte, outra possibilidade: um LEVITA… A mesma desilusão. Também ele «passou pelo lado contrário» (antiparêlthen).
5. A narrativa atinge o seu auge. Eis que vem agora um SAMARITANO, lídimo representante daquele «estúpido povo que habita em Siquém» (Eclesiástico 50,26), mas vai fazer tudo ao contrário dos dois anteriores representantes da religiosidade fria e formal de Jerusalém. Veja-se com quanto pormenor o narrador descreve todos os seus gestos: vem até junto dele (1), viu-o (2), encheu-se de comoção (3), aproximou-se (4), enfaixou-lhe as feridas (5), derramou óleo e vinho (6), colocou-o na sua montada (7), levou-o para uma pousada (8), tomou-o ao seu cuidado (9), deu dois denários ao hospedeiro (10), e disse-lhe: «Toma tu cuidado dele» (11).
6. Aí está a religiosidade fria e calculista e insensível, debruçada sobre si mesma, que passa ao lado da vida por e para estar atenta apenas às rubricas, por parte dos agentes do culto de Jerusalém, em claro contraponto com o amor pessoal, eivado de afecto e de gestos de carinho activo e criativo deste SAMARITANO, totalmente debruçado sobre os outros e para os outros, interessando-se até sobre o seu futuro, e provocando outros a entrar nesta dinâmica nova cheia de amor novo. Notável aquele: «Cuida tu dele!» do Samaritano implicando o hospedeiro neste trabalho do amor! E de Jesus implicando o doutor: «Vai e faz tu!».
7. É por tudo isto que, sobre uma pedra da pretensa pousada do Bom Samaritano, na verdade um edifício do tempo dos Cruzados, mas que os peregrinos identificam com a pousada da parábola, um peregrino medieval gravou em latim estas palavras: «Ainda que sacerdotes e levitas passem ao lado da tua angústia, fica a saber que Cristo é o Bom Samaritano, que terá compaixão de ti, e, na hora da tua morte, te conduzirá à pousada eterna».
8. «Amarás!», é quanto responde o doutor, lendo a Lei de Deus (Lucas 10,27), que não está longe de ti: está na tua boca e no teu coração (Deuteronómio, 30,10-14).
D. António Couto, In Mesa de Palavras

01 julho, 2013

O carpinteiro



Um velho carpinteiro que construía casas estava pronto para se aposentar. Informou o chefe do seu desejo de sair da indústria de construção e passar mais tempo com a família. Ainda disse que sentiria falta do salário, mas realmente queria aposentar-se.
A empresa não seria muito afectada pela saída do carpinteiro, mas o chefe estava triste por ver um bom funcionário partindo e pediu ao carpinteiro para trabalhar em mais um projecto, como favor. O carpinteiro não gostou mas acabou concordando. E foi fácil ver que ele não estava entusiasmado com a ideia.
Assim prosseguiu fazendo um trabalho de segunda qualidade e usando materiais inadequados. Foi uma maneira negativa dele terminar a sua carreira. Quando o carpinteiro acabou, o chefe veio fazer a inspecção da casa construída.
Deu a chave ao carpinteiro e disse:
"Essa é a sua casa. Ela é o meu presente para ti.".
O carpinteiro ficou muito surpreso. Que pena! Se ele soubesse que estava construindo a sua própria casa, teria feito tudo diferente.