26 fevereiro, 2013

Ó meu Deus, Trindade que eu adoro



Ó meu Deus, Trindade que eu adoro,
ajudai-me a esquecer-me inteiramente,
para me estabelecer em vós,
imóvel e pacífica como se já a minha alma estivesse na eternidade.
Que nada possa perturbar a minha paz,
nem fazer-me sair de vós, ó meu Imutável,
mas que cada minuto me leve mais longe
na profundeza do, vosso Mistério.
Pacificai a minha alma, fazei dela o vosso céu,
vossa morada amada e o lugar de vosso repouso.

Que nunca aí eu vos deixe só,
mas que esteja lá inteiramente,
toda acordada em minha fé, perfeita adoradora,
toda entregue à vossa Acção criadora.

Ó meu Cristo amado, crucificado por amor,
quereria ser uma esposa para o vosso Coração,
quereria cobrir-vos de glória,
quereria amar-vos... até morrer de amor!
Mas sinto a minha incapacidade
e peço-vos para me «revestir de vós mesmo»,
para identificar a minha alma com todos os movimentos de vossa alma,
me submergir, me invadir, e vos substituir a mim,
a fim que a minha vida não seja senão uma irradiação da vossa Vida.
Vinde a mim como Adorador,
como Reparador e como Salvador.

Ó Verbo eterno, Palavra do meu Deus,
quero passar a minha vida a escutar-vos,
quero tornar-me inteiramente dócil ao vosso ensino,
a fim de tudo aprender de vós.
Depois, por entre todas as noites,
todos os vazios, todas as incapacidades ,
quero fixar-vos sempre e permanecer sob a vossa grandiosa luz;

ó meu Astro amado,
fascinai-me para que já não possa mais sair da vossa irradiação.

Ó Fogo consumidor, Espírito de amor, «sobrevinde em mim»,
a fim que se faça na minha alma como uma encarnação do Verbo:
que eu Lhe seja uma humanidade de acréscimo
na qual Ele renove todo a seu Mistério.

E vós, ó Pai, inclinai-vos para esta vossa pobre pequena criatura,
«cobri-a com a vossa sombra»,
não vede nela senão o Bem Amado no qual pusestes todas as vossas complacências

Ó meus Três, meu Tudo, minha Beatitude, Solidão infinita,
Imensidade em que me perco,
entrego-me a vós como uma presa.
Sepultai-vos em mim para que eu me sepulte em vós,
esperando ir contemplar na vossa luz o abismo das vossas grandezas.

(Bem-aventurada Isabel da Trindade)
Recolha de Fr. Carlos

24 fevereiro, 2013

QUARESMA NÃO É FICAR AQUI, NO PENÚLTIMO



1. Baptizado no Jordão enquanto estava em oração (nota típica de Lucas), tentado, mas Vitorioso, Jesus começou a executar o seu programa filial baptismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Baptismo consumado!) em que nós somos por Ele baptizados com o fogo e com o Espírito Santo (ainda o luminoso texto de Lc 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está Hoje a Transfiguração, Luz incriada e inacessível (Lc 9,29; cf. S1 104,2; 1 Tm 6,16) que investe aHumanidade de Jesus, experiência momentânea da Ressurreição, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial baptismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Também aqui temos a nota típica de Lucas de que Jesus subiu ao monte para orar, acontecendo a Transfiguração do Rosto e das vestes enquanto orava (9,28).
 2. Baptizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Baptismo e na Transfiguração /Confirmação: «o Filho Meu», «o Amado» – «o Eleito» (Lc 3,22; 9,35), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», dirigido a todos os discípulos: Jesus é também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Dt 18,15-18. Como dispunha a Lei antiga, que requeria duas ou três testemunhas (Dt 17,6), testemunham a cena grandiosa da Transfiguração / Confirmação três discípulos, os quais são igualmentetransfigurados / confirmados, não no Rosto e nas vestes, mas no coração, para a sua missão futura (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele.
 3. Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado / Ressuscitado. É para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os profetas e os Salmos, falam acerca d’Ele! (Lc 24,27 e 44; Jo 5,39 e 46; Act 10,43). É o «segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Só em Lucas temos o assunto falado: «falavam do Êxodo d’Ele que se consumaria em Jerusalém!» (9,31). Passagem deste mundo para o Pai, Liberdade definitiva, cumprimento do Êxodo antigo!
 4. Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial baptismal até à Cruz: «Mestre, belo é estarmos aqui e fazermos aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias» (Lc 9,33). Aqui significa deter-se no penúltimo e provisório e recusar caminhar para o último e definitivo! Lc 9,33 (e Mc 9,6) anotam correctamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido baptizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, baptizado / confirmado, levar por diante a missão filial baptismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.
 5. A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os baptizados / confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração da Humanidade do Senhor, a divinização por graça.
 6. Em consonância com a manifestação de Luz do Evangelho da Transfiguração (Lc 9,28-36), aí está o Lume Aceso, que é Deus, a passar pelo nosso mundo (Gn 15,5-12 e 17-18). Abraão representa-nos. Tem dúvidas. Deus dissipa-lhas, comprometendo-se com ele e connosco. O ritual que sela este compromisso é antigo, mas ainda hoje se pratica entre os beduínos. Cortam-se ao meio animais puros, e põe-se uma metade diante da outra. A seguir os contraentes passam entre as carnes divididas dos animais, proferindo uma auto-maldição, do género: «Suceda-me o que sucedeu a estes animais, se eu não for fiel à palavra dada!». Note-se que, no texto de hoje, caiu sobre Abraão (e nós com ele) um sono profundo, dom de Deus (veja-se o mesmo sono no Evangelho de hoje: Lucas 9,32), e é só Deus, no fogo, que passa por entre as carnes divididas dos animais. Só Ele, portanto, se compromete. Nós, ensonados e ensonhados, somos apenas beneficiários deste compromisso de Deus de levar a nossa história em direcção a Cristo, que é a verdadeira descendência de Abraão (Gl 3,16), que Abraão vê e saúda de longe (Hb 11,13), cheio de alegria (Jo 8,56). A meta de Abraão torna-se clara e define e alumia a estrada que segue. Por isso, Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. É tão simples, tão novo e tão decidido este sono / sonho dado a Abraão, a Pedro, João e Tiago! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Is 51,2). E partir com ele daqui, do penúltimo e provisório, ao encontro de Cristo Transfigurado / Ressuscitado.
 7. A Carta de Paulo aos Filipenses (3,17-4,1) põe outra vez tudo às claras: ou agarrados aqui ao penúltimo e provisório, ou a caminho do último, da cidade dada por Deus aos seus filhos e filhas, vida nova e transfigurada e conformada à Humanidade glorificada de Cristo.
 8. A Quaresma é esta estrada de Luz e de Jesus.
D. António Couto, In Mesa de Palavras

23 fevereiro, 2013

Orar à maneira de Jesus e daqueles que se encontraram com Ele... (III)




2. A oração das pessoas que se encontraram com Jesus

       Tudo o que foi dito até agora sobre o tema da oração, referiu-se directamente à pessoa de Jesus. Folheando, porém, o evangelho de João, é possível detectar-se outros protagonistas e expressões orantes. Estamos a falar, concretamente, de todas aquelas pessoas que um dia vieram a encontrar-se com Jesus e que, sob o impulso desta excepcional experiência, se dirigiram a Ele com a petição de qualquer graça ou exprimindo-lhe sentimentos de adoração e louvor.
         Debruçando-nos sobre cada uma das suas orações, surge no nosso interior a seguinte interrogação: será que ainda hoje podemos orar com todas elas? Será que podemos continuar a evocar, a ter presente os seus conteúdos? A resposta é positiva. Não só podemos rezar com as mesmas expressões orantes, mas também assumir redondamente os seus conteúdos. No entretanto, há que primeiro compreendê-los ao nível da mente e do coração...
         Elenquemos algumas dessas principais orações e notemos os seus conteúdos.

         1) Orações de súplica

         «Ora, não havia mais vinho, pois o vinho do casamento tinha-se acabado. Então a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm mais vinho» (2,3)

Primeira oração de súplica: “Eles não têm mais vinho”

         (Explicitamente vemos a apresentação de uma necessidade. Implicitamente reconhecemos a atenção, preocupação, solicitude, compaixão, amor pelos mais necessitados. O Diálogo de Deus com os homens - “a sua oração” - também se reveste destes mesmos sentimentos, atitudes, valores, qualidades, características...)  
        
         Maria ora deste jeito pela ocasião das núpcias de Caná. Mais concretamente, depois de se ter dado conta que a eventual falta de vinho poderá causar um grave embaraço aos esposos. À parte de ser a apresentação de uma necessidade a Jesus, é uma oração carregada de atenção, preocupação, solicitude, compaixão, ternura, despojamento, oblação e amor pelos mais necessitados.
         Demonstra, pois, qual seja a sensibilidade da mãe de Jesus diante das pessoas em apuros. Maria faz-se aqui dom e esperança para os mais desprotegidos.
         Da nossa parte, ao assumirmos a súplica de Maria - “olha que eles não têm vinho” - estamos também a apresentar a Deus as necessidades do nosso próximo e a manifestar-lhe os nossos sentimentos/atitudes por cada um deles. Se quisermos, estamos ainda a dizer-lhe que já nos desinteressamos de nós mesmos para fazermo-nos dom e ocasião de esperança para o irmão.

«Jesus lhe respondeu: “Aquele que bebe desta água terá sede novamente; mas quem beber da água que eu lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água...”» (4,13-15)

         Segunda oração de súplica: “Senhor, dá-me dessa água”

         Poderemos rezar hoje com a mesma súplica? Quando a Samaritana dirigia estas palavras a Jesus, ela pensava na água do seu poço e na possibilidade de se dessedentar de uma vez para sempre.
Nós sabemos, porém, que a água de que fala Jesus é a água da sua palavra colocada pelo Espírito nos nossos corações para que nos tornemos fonte de vida e de obras boas.
Estamos, pois, em condições, até mais que a Samaritana, de pedir a Jesus este tipo de água e de repetir com o salmista: «Como a corça bramindo por águas correntes, assim minha alma está bramindo por ti, Ó meu Deus!» (Sl 42,2-3); «Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água» (Sl 63,2).

         «Ouvindo dizer (um funcionário régio) que Jesus viera da Judéia para a Galiléia, foi procurá-lo, e pedia-lhe que descesse e curasse seu filho, que estava à morte» (4,47).

         Terceira oração de súplica: “Pediu-lhe que descesse e curasse seu Filho”

         Ao crente não é proibido pedir ao Senhor o que lhe é útil e necessário desde o ponto de vista estritamente humano. A intervenção de Jesus, aliás, mostra como o seu Deus é alguém de rosto humano e sempre disposto a ajudar quem se encontra enfermo. Não é por acaso que o salmista se mete a confessar publicamente: «Bendiz a Iahweh, ó minha alma, e não esqueças nenhum dos seus benefícios. É ele quem perdoa tua culpa toda e cura todos os teus males. É ele quem redime tua vida da cova e te coroa de amor e compaixão. É ele quem sacia teus anos de bens e, como a da águia, tua juventude se renova» (Sl 103,2-5).
No entretanto, aquilo que conta, no acto de suplicar, é ter, como o oficial régio, uma fé ilimitada no Senhor (4,50.53) e servir-se das graças recebidas para robustecê-la ainda mais (4,53).

         «(Respondeu-lhes Jesus): porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo. Disseram-lhe: “Senhor, dá-nos sempre deste pão”» (6,33-34)

         Quarta oração de súplica: “Senhor, dá-nos sempre deste pão”

         Na boca da gente de Cafarnaum, esta súplica refere-se aos pães que Jesus tinha multiplicado. Para o evangelista, porém, refere-se ao pão da palavra de Deus e ao pão eucarístico que dá acesso à vida plena.
A nós cristãos, obviamente, interessa esta segunda leitura. E é perfeitamente natural que, diante de um pão trasbordante de vida, queiramo-lo pedir muitas vezes – “Senhor, dá-nos sempre deste pão” - e sintamos a necessidade de recordar: «Trabalhai, não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até à vida eterna» (6,27); «O pão de Deus é aquele que desce do céu e dá a vida ao mundo» (6,33); «Eu sou o pão da vida» (6,35); «Quem comer deste pão viverá eternamente» (6,51).
Seria, contudo, redutor e mesquinho limitar-nos a pedir. Como Jesus, também nós somos chamados a fazer-nos pão para os outros; quer dizer, dom, ajuda, conforto, esperança, salvação, liberação. Como Jesus, também nós devemos tornar-nos carne que se imola e sangue que se derrama para bem do mundo.

         «(Responde Jesus a Pedro): “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”. Lhe disse Simão Pedro: “Senhor, não apenas meus pés, mas também as mãos e a cabeça”» (13,8-9)

         Quinta oração de súplica: “Senhor, lava-me...”

         O motivo que leva Pedro a pedir a Jesus para lhe lavar os pés, as mãos e a cabeça é o medo de ser separado dele. Não se dá conta, em nenhum momento, que Jesus não quer lavá-lo por fora, mas por dentro, no interior e que esta lavagem acontecerá com a sua morte na cruz.
         Nós, porém, ao contrário de Pedro, estamos já ao corrente deste simbolismo. Logo, estamos obrigados a suplicar a Jesus que nos lave realmente como nos tem pensado lavar, isto é interiormente de todas as imundícies, e nos dê a pureza espiritual que fala o salmista: «Tem piedade de mim, ó Deus, por teu amor! Apaga minhas transgressões, por tua grande compaixão! Lava-me inteiro da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado... Purifica meu pecado com o hissope e ficarei puro, lava-me, e ficarei mais branco do que a neve... Cria em mim um coração puro, renova um espírito firme no meu peito» (Sl 51,3-4.9.12).

         «Se me conheceis, também conhecereis a meu Pai. Desde agora o conheceis e o vistes. Filipe lhe diz: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!” (14,7-8).

         Sexta oração de súplica: “Mostra-nos o Pai”

         Ao fazer a Jesus este pedido, o apóstolo Filipe mostra não ter compreendido absolutamente nada do que Ele acaba de dizer. O apóstolo pensa poder ver o Pai em carne e osso, de tal maneira que recebe esta resposta: «Quem me vê, vê o Pai. Como podes dizer: ‘Mostra-nos o Pai!’? Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim? (vv. 9-10)
         De acordo com as palavras de Jesus, vimos a saber que não devemos aspirar uma visão directa do Pai. Se desejamos vê-lo, não temos se não que pedir um conhecimento sempre mais claro e profundo da pessoa de Jesus. O pedido deste conhecimento não deve, contudo, restringir-se ao simples campo teórico. Para João, conhecer Jesus significa também fazer experiência dele e entrar numa relação de grande intimidade (10,3-4). Significa conhecer mas, ao mesmo tempo, amar, escutar, acolher, observar, viver.

Pe. Vasco

21 fevereiro, 2013

Benditos remendos do alcatrão!


Foi Domingo, pelas 20 horas, que tudo começou. Regressava a casa, no assento do co-piloto (reconheço que vinha a dormitar!), juntamente com os meus irmãos depois de uma actividade juvenil em Fátima. De repetente, o carro estremece todo e eu, também sacudido, acordo total e finalmente e digo: "É por isto que Portugal não vai para a frente: em vez de colocarem o piso todo de novo, já fizeram mais um remendo! Gastam mais dinheiro em remendos do que em estradas!"
Tenho que reconhecer que não é (e, se calhar, não é a última!) que, num acesso de ira, me vem esta enxurrada de palavras à boca. 

Hoje, numa aula de Teologia da Vida religiosa, ao falarmos sobre o radicalismo evangélico, lêmos uma passagem bíblica que me fez voltar a Domingo:

" [Jesus] Disse-lhes [os fariseus e os doutores da Lei murmuravam por Jesus comer com os cobradores de impostos e com os pecadores em casa do neo-convertido Levi] também esta parábola: «Ninguém recorta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha; aliás, irá estragar-se a roupa nova, e também à roupa velha não se ajustará bem o remendo que vem da nova. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho novo rompe os odres e derrama-se, e os odres ficarão perdidos. Mas deve deitar-se vinho novo em odres novos. E ninguém, depois de ter bebido o velho, quer do novo, pois diz: 'O velho é que é bom!'»
(Lc 5, 36-39)

Bem, Jesus não falou de asfalto e remendos, mas a ideia é a mesma! Reconheço que foi a parte dos remendos que me sacudiu! E pôs-me a pensar:  nesta estrada que é a minha vida, o que é que ando a fazer: a remendar ou a alcatroar de novo? Não será que, em vez de  asfaltar de novo, ando pôr remendos na minha estrada, que me gastam mais recursos do que refazê-la de novo e, além disso, me fazem perder a estabilidade e a tranquilidade? Sim, pôr remendos é mais fácil, mas não é o melhor: e os nossos carros podem ser a prova disso mesmo! E são muitas as vezes que ponho remendos: um remendo aqui na caridade para com este, um remendo ali nos meus maus pensamentos, um remendo acolá na minha inveja! E não nos decidimos a refazer a estrada! E, chegando a um certo ponto, a nossa vida é apenas e só um conjunto de remendos, que estragam os carros e nos deixam com os cabelos em pé! Resolvamos definitivamente o problema, asfaltando de novo a nossa vida, criando um novo modo de ser, agindo não na superfície, mas na raiz do nosso ser! É verdade que dá mais trabalho, mas será a única maneira de chegarmos mais calma e tranquilamente ao destino.


Reconheço que a reflexão saiu um pouco desajeitada, como tudo o que é a experiência humana. E para que isto não seja uma "desajeitação total", dou a palavra ao Mestre João da Cruz, porque ele sabe dizer o que eu quero dizer melhor do que eu:


"A alma que há-de chegar à divina união há-de carecer
de todos os apetites voluntários;
quer sejam de pecado mortais, que são os mais graves; 
quer de pecado venial, que são os menos graves;
quer somente de imperfeições, que são as menores;
de todos se há-de esvaziar e de todos há-de a alma carecer 
para chegar a esta total união, por mínimos que sejam.

E a razão é porque o estado desta divina união 
consiste em ter a alma, quanto à vontade, 
com tal transformação na vontade de Deus, 
de forma a não haver nela coisa contrária à vontade de Deus,
mas que, em tudo e por tudo, 
o seu movimento seja somente vontade de Deus."

(1 S 11,2)

Na verdade, benditos buracos do alcatrão! Bem, a partir de agora, cada vez que for sacudido por um buraco do asfalto vou tentar não irromper numa enxurrada de palavras nem, muito menos, ir interromper a vida dos outros com a "Grândola Vila Morena", mas perguntar-me: 

ando a remendar ou a alcatroar? 


Fr. Renato.








Ah... e bom alcatroamento neste tempo da Quaresma!? :)


19 fevereiro, 2013

“Testemunha da verdade”




"Afastada, de momento, a ideia de ser religiosa, Edith pensa em empregar o seu tempo e as suas qualidades em alguma tarefa útil, não apenas científica mas também apostólica. Espira será o seu campo de trabalho. O sacerdote que baptizou apresenta-a ao vigário geral da diocese, Mons. Josef Shwind que desde então o seu conselheiro espiritual e amigo cordial. E a primeira coisa que este sacerdote faz é rejeita-lhe todos os planos prematuros de vida claustral e impor-lhe um longo período de espera no mundo. Ao longo dez anos Edith vai uma e outra vez colocando a questão da sua entrada no convento e ouve sempre a mesma resposta do seu director espiritual: não. E ela aceita com obediência humilde e absoluta. Atendendo ao seu desejo de silêncio e recolhimento, Mons. Schwind encarrega-se de lhe arranjar um trabalho adequado e recomenda-a para a professora de alemão no colégio de santa Maria Madalena, das Irmãs dominicanas.

Habitual a trabalhar com alunos universitário em Friburgo, aqui, de modo, com este discipulado, desce de nível. Mas ela depressa adapta ás novas circunstâncias e sente-se feliz em espira por poder viver dentro de uma atmosfera conventual. Ao longo destes anos, a sua personalidade cristã e católica vai amadurecendo.   Prepara conscienciosamente as suas aulas. Não se limita a instruir, procura educar as aulas, menos com palavras que com o seu testemunho de vida. Em toda a sua maneira de ser -  e não apenas na sala de aulas – revela-se como excelente pedagoga. 

Edith procura esconder-se, para aprofundar a sua vida de fé e viver em felicidade a imitação de Cristo. Mas, quanto mais se esconde, tanto mais radiante aparece aos que com ela tratam a luz interior da sua união com Deus.

«A Doutora Edith Stein dava aula de alemã nos cursos superiores da escola; era uma mulher muito inteligente, piedosa e modesta no seu porte. No convento, ocupava um quarto simples, com muitos livros nas estantes. Ali passávamos nós as mais velhas, algumas belas e interessante veladas literalmente sentadas as seus pés e escudando as suas palavras. Era pequena, mas de aspecto agradável, de rosto um pouco pálido e de risca ao no cabelo. Uma pequena cova no queixo tornava o seu rosto um tanto interessante. O seu porte era geralmente sério e os seus olhos reflectiam frequentemente uma certa tristeza. No entanto, ria – se connosco quando surgia algum motivo razoável. Tínhamos para com ela uma certa veneração, e o seu rosto irradiava algo que comovia e cativava interiormente…como cristã profundamente crente sentia – se muito á vontade e e segura em casas Das dominicanas. Era frequente participar na oração coral das Irmãs. Víamo-lo várias vezes ao dia recolhida em profunda e contemplativa oração, ajoelhada num reclinatório, num canto próximo do altar…»"


"Nenhuma obra espiritual vem ao mundo
sem grandes trabalhos."



VAZ,  Mário -  Edith Stein. Uma síntese dramática do séc. XX.  Paço de Arcos:  Edições Carmelo, 1998, pp. 55-57.

Recolha de Fr. Eugénio

18 fevereiro, 2013

O choupo e a azinheira




Era uma vez um choupo esbelto que crescia junto a um rio.
Era o último do choupal.
Perto dele havia uma azinheira, frondosa e sapuda.
Era a primeira de um azinhal situado numa encosta.

- Disse o choupo à azinheira:
 «Como é que ficaste tão baixinha?
Eu pensava que irias crescer mais do que eu».

        - A azinheira respondeu:
«Não sou baixinha.
O que acontece é que eu cresci também para baixo.
Tenho raízes fortes. Elas dão-me segurança.
 Digo-te mais: até me metes dó quando o vento sopra fortemente e te vejo a balancear. Parece que vais partir de um momento para o outro. Porque é que crescestes assim?».

-   Respondeu-lhe o choupo: 
«Eu vou sempre à procura do que é novo: novo céu, novo ar, nova luz. Se ficar aí em baixo, abafo. Aborreço-me de estar sempre na mesma. Adoro a novidade. Se visses a paisagem que se vislumbra aqui de cima...!»

-   Disse-lhe a azinheira:
«Olha lá: e se fizéssemos um enxerto de choupo na azinheira? Teríamos a minha segurança e a tua novidade. Que filho tão bonito que nos sairia!».

-   «Excelente! – disse o choupo. Os agrónomos não pensaram nisso, mas nós vamos conseguir».

In Mensageiro do Menino Jesus de Praga

17 fevereiro, 2013

Professar a Fé


1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreicão e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Baptismo consumado: Lucas 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correcta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os baptizados são chamados a refazer com Cristo bapti­zado o seu programa baptismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Baptismo no Jordão, passando pela Trans­figuração/Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Baptismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Actos 10,37-38: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos baptizados, «pre­param‑se» intensamente para a Noite Pascal Baptismal, início e meta da vida cristã.

2. Baptizado com o Espírito Santo, e declarado por Deus «o Filho meu», «o Amado» (Lucas 3,21-22), Jesus é conduzido pelo Espírito Santo através do deserto (Lucas 4,1), lugar teológico e não meramente geográfico – com muita água (João 3,23) cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39) cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19 –, lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Baptista (Lucas 3,2-6), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Sendo um lugar provisório, aponta para a Terra Prometida e definitiva do repouso. O deserto é lugar de passagem. Sem pontos de referência nem marcos de sinalização. Se o rumo não estiver bem definido, o viandante corre o risco de se perder no deserto da vida e de nunca chegar à Vida verdadeira.

 3. A liturgia deste Domingo I da Quaresma, neste Ano C, oferece-nos três textos sublimes atravessados em filigana pela profissão de fé. Comecemos pelo Evangelho com o texto majestoso das chamadas tentações de Jesus (Lucas 4,1-13). Durante quarenta dias (40 é o tempo de uma vida, a vida toda) Jesus jejuou (Lucas 4,2), isto é, perscrutou a «obra» nova de Deus na história do seu povo, que o mesmo é dizer, saboreou as Escrituras, o outro alimento (Deuteronómio 8,3; Mateus 4,4; cf. João 4,32 e 34-35: notável releitura em que aos olhos atónitos dos discípulos saltam as estações do ano!), e meditou, sempre a partir das Escrituras, na sua missão filial baptismal. E é na sua condição de baptizado, isto é, de Filho de Deus, que ele é tentado. De facto, toda a tentação – a de Cristo como a nossa – começa sempre da mesma maneira: «se és o Filho de Deus…». Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Lucas 23,35-39). Portanto, sempre. Do Baptismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua «obra», e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4; cf. João 12,31).

4. Mas detenhamo-nos brevemente nas ofertas do tentador de hoje. Em primeiro lugar, fabricar o próprio pão, o pão que o diabo amassou, em vez de receber pão da Palavra dado por Deus (Deuteronómio 8,3) aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2) (Lucas 4,3-4). Em segundo lugar, a oferta de todos os reinos deste mundo e da sua glória em troca do afastamento de Deus (Lucas 4,5-7). E a resposta decidida de Jesus, remetendo para a Escritura Santa e para Deus: «Está escrito: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”» (Lucas 4,8). Em terceiro lugar, a tentação do sucesso fácil em Jerusalém, taxativamente recusada por Jesus (Lucas 4,9-13). Para quem tem diante de si o texto de Mateus, aperceber-se-á de imediato da troca de lugar da segunda e da terceira tentação. Fácil de compreender: em Lucas, Jerusalém é o centro do mundo, é lá que Jesus aparece logo aos 40 dias (Lucas 2,22), aos 12 anos (Lucas 2,41), é para lá que Jesus caminha na secção central deste Evangelho (Lucas 9,51-19,28), é lá que se sucedem os últimos episódios da sua vida, é lá que se os discípulos são mandados esperar (Lucas 24,49-53), em vez de se dirigirem para a Galileia. Convém, portanto, que a terceira tentação decorra em Jerusalém.

5. Baptizado, tentado na sua condição de Baptizado, e Vitorioso na tentação, Jesus passa de imediato à execução do seu programa filial baptismal: anunciar o Evangelho de Deus e fazer a sua «obra» (Lucas 4,14s.). Como ele também nós.

 6. Extraordinária a lição do Livro do Deuteronómio 26,4-10: aqui estou, meu Deus, orientando a minha vida toda para Ti, oferecendo-Te os primeiros frutos desta Terra boa e bela que nos destes, depois de nos teres chamado do meio da confusão e dado a liberdade! Eu canto para Ti, meu Deus, pois é a Ti que devo a minha liberdade e a bondade e beleza da minha vida! Este belo texto é uma miniatura, um colar de pérolas do Teu amor por nós, que devemos levar sempre connosco, como se fosse uma fotografia Tua! O chamamento dos pais, a libertação do Egipto, a dádiva da Terra Prometida.

 7. E a lição da Carta aos Romanos 10,8-13: na minha vida toda, no meu coração e na minha boca – no coração a fé, na boca o testemunho – escorre o sabor da Tua Palavra, doce como o puro mel dos favos!

Dom António Couto, in Mesa de Palavras

16 fevereiro, 2013

Orar à maneira de Jesus e daqueles que se encontraram com Ele... (II)





- Segundo o desígnio de Deus e, como tal, eficaz

A oração de Jesus não se fundamenta em interesses pessoais ou na força das palavras e dos gestos. Aliás, se isto viesse acontecer, não passaria de uma oração ao jeito dos pagãos (Mt 6,7-8), tantas vezes criticada por ele. Os pagãos, à base de tanto insistirem, de tanto pedirem, de tanto informarem, de tanto persuadirem com as suas palavras e gestos, é que pensavam ser escutados pela divindade.    

Fundamenta-se, sim, na vontade do Pai, aliás como toda a sua vida: «Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou (4,34); (...) Eu não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (5,30); (...) E quem me enviou está comigo. Não me deixou sozinho, porque faço sempre o que lhe agrada» (8,29).

Daí, precisamente, a sua eficácia: «(Marta diz a Jesus): Mas ainda agora sei que tudo o que pedires a Deus, Ele te concederá» (11,22); «Jesus ergueu os olhos para o alto e disse: “Pai, dou-te graças porque me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves...”.

- Pelos seus discípulos (por cada um de nós) (17,9-19)

No capítulo 17, conhecido pela grande oração de Jesus ao Pai, é possível observar como os discípulos também fazem parte da sua oração. E os motivos pelos quais os inclui são variados: para que, no meio do mundo hostil e já na sua ausência, não abandonem a fé (vv. 11-15); para que sejam guardados no nome do Pai e preservados do poder do mal (vv. 11.15); para que, mesmo habitando num mundo incrédulo, cheguem a formar uma coisa só com Ele e com o Pai (v.11); para que o ódio do mundo não os impeça de gozar a sua plena alegria (v. 13); para que, como Ele, também eles sejam “santificados na verdade” (vv. 17.19) e se tornem verdadeiras testemunhas diante dos homens (v. 18);

À parte deste elenco de motivos, podemos destacar ainda a própria identidade do discipulado. Jesus ora de modo a que os seus discípulos venham a ser propriedade exclusiva de Deus (v.9), a viver numa situação diversa daquela em que vive o mundo (vv. 9.14-16), a encontrar-se no mundo, sendo para o mundo mas sem ser do mundo (vv.9.11.14.16), a acolher e a observar a palavra de Jesus como enviado do Pai (vv.8.17.19), a aspirar sempre uma comunhão mais profunda (v. 11).

- Por todos os que virão a acreditar nele (17,20-26)

Agora não se trata mais dos discípulos estritamente ditos, mas de todos aqueles que acreditarão nele mediante o anúncio deles (de cada um de nós). O v. 20 é claro, vejamos: «Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio da sua palavra, crerão em mim».


Esta súplica, de acordo com a temática da unidade e do amor que caracterizam esta secção, destina-se a faze-los participar da sua comunhão de vida e amor com o Pai: «a fim de que todos sejam um (como nós...); (...) Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós» (v. 21); «... para que sejam um, como nós somos um» (v. 22); «Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo saiba.. que os amaste como amaste a mim» (v.23); «Pai, ... quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo» (v.24); «a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles» (v.26).


- Que alcança alguns dons

Entre os muitos dons que Jesus pede e obtém do Pai para os seus discípulos, está o do Espírito Santo. A indicá-lo vemos o trecho de Jo 14,16-17: «E rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco».

Tratando-se do Espírito, talvez fosse melhor falar do dom por excelência ou do dom-fonte, enquanto nascente de todos os dons divinos ou responsável por toda a riqueza espiritual dos crentes.

Para fazermos uma ideia de quanto seja importante esta petição de Jesus, bem como da importância de continuar a assumi-la nas nossas próprias orações, basta termos presente aquilo que o evangelho e as cartas de João atribuem à obra do Espírito. É próprio do Espírito tornar os homens filhos de Deus (3,3-8), ajudá-los a superar um modo de pensar puramente humano e sintonizá-los totalmente com o modo de pensar do Senhor (3,3-8), promover o culto espiritual (4,23-24), instruir (14,26), confirmar na fé (15,26-27), levar a um conhecimento sempre mais profundo e claro do mistério de Cristo (16,13-15; 1Jo 5,6), orientar para uma vida de comunhão e de caridade (1Jo 3,24; 4,13), transmitir fielmente a palavra de Jesus (1Jo 4,6) e fazê-la penetrar no íntimo dos corações (Jo 6,63).

Usando outros termos menos técnicos e mais próximos à nossa linguagem, podemos dizer que a actividade do Espírito é verdadeiramente excepcional enquanto tende a criar pessoas vivas, não mortas; impacientes de novidade, não resignadas; lutadoras, não rendidas; trasbordantes de amor, não tépidas (ñ indiferentes/mornas no amor); novas, não habituadas; autênticas, não hipócritas; abertas aos valores, não às aparências; encaminhadas para o futuro, não agarradas ao passado.

Numa palavra, pessoas animadas por aquele mesmo impulso interior que fazia escrever S. Teresinha do Menino Jesus: «(Quero) ser carmelita, Esposa e Mãe. No entanto, sinto em mim outras vocações, sinto a vocação de Guerreiro, de Sacerdote, de Apóstolo, de Doutor, de Mártir; (...) Quereria ser Missionário (....), mas quereria, sobretudo, Ó meu Bem-amado Salvador, quereria derramar o meu sangue (isto é, a minha vida) por ti, até à última gota...» (MsB 2vº, 3rº).

Pe. Vasco

14 fevereiro, 2013

Rosas de Santa Teresinha




Teresa e mais cinco irmãs encontraram-se à volta da cruz de granito do claustro. Apanham as pétalas junto de umas vinte roseiras e atiram-nas ao crucifixo. Do mesmo modo, a última fase da sua vida de amor será cantada em Uma Rosa Desfolhada (PN 51). O anúncio metafórico da sua missão póstuma, «Uma chuva de Rosas» (CA 9.6.3), descobre – ou melhor, não deveria encobrir – a única ambição de Teresa, no céu como na terra: amar a Jesus e fazê-Lo amar. Todos têm conhecimento do amor que Teresa dedicou às flores.

Uma pessoa desistiu de ler "História de uma Alma" quando se deparou com o subtítulo da autobiografia de Santa Teresa de Lisieux: "História primaveril de uma florzinha branca escrita por ela mesma e dedicada à Reverenda Madre Inês de Jesus". Porque achou a palavra "florzinha" decididamente repugnante. Vencida a imediata rejeição à autora que, já de início, se apresenta como uma "florzinha branca", aquele leitor decepcionado prestou um pouco mais de atenção ao desabrochar dos feitos heróicos dessa florzinha. E entristeceu-se ao terminar a leitura do livro. Pediu o segundo volume, que, infelizmente não existe.

Jesus meu único amor, aos pés do teu calvário, como gosto à tarde de atirar-Te flores!...Ao desfolhar para Ti a rosa primaveril, quisera enxugar o Teu pranto... Atirar flores, é oferecer-Te em primícias, os mais leves suspiros, as mais pesadas dores, penas e alegrias, os meus pequenos sacrifícios, Eis mas minhas flores!...

Todos têm conhecimento do amor que Teresa dedicou às flores. Ela perscrutava com avidez o livro da natureza, no qual se estampam flores das mais variadas espécies. Sempre atenta aos jardins, desde a infância, debruçava-se sobre os canteiros. Em sua autobiografia, por razões muito especiais, não se esquecerá daquilo que seus olhos e coração contemplaram: a diversidade das flores quanto à beleza. Teresa, apesar dessa diversidade, percebeu que as flores convivem harmoniosamente nos jardins do mundo inteiro.

Da tua beleza a minha alma enamorou-se, quero oferecer-Te os meus aromas e flores, ao lançá-las para Ti nas asas do vento, quisera inflamar os corações!... Atirar flores, Jesus, eis a minha arma quando quero lutar para salvar os pecadores. A vitória é minha... eu sempre Te desarmo com as minhas flores!!!...

Teresinha nunca quis ser, nos jardins do Senhor, uma flor altaneira. Preferiu ser uma florzinha rebaixada, que até uma criança pode colher e passos desavisados podem pisar.
Que florzinha branca teria sido Teresa? Uma rosa branca ainda em botão? "História de uma Alma" apresenta-nos uma preciosa pista.

As pétalas das flores, afagando-Te o Rosto, dizem-Te que o meu coração é teu. O meu único prazer neste vale de lágrimas, é atirar flores, repetir os teus louvores... no céu irei em breve como os anjos pequeninos, atirar flores!..  
Fr. Vitor

12 fevereiro, 2013

Isabel da Trindade




Isabel Catez nasceu, no campo militar de Avor, perto de Bourges, França. O seu pai era capitão do exército francês. Desde muito cedo que Isabel mostrou ser uma criança turbulenta, muito viva, faladora, precoce e de temperamento colérico. A sua mãe quando fala dela nalgumas cartas chama-a «autêntico diabinho». E a sua irmã não hesita em escrever que era «um verdadeiro diabo». Chega mesmo a dizer que era tão violenta que os familiares a ameaçaram enviar para uma casa de correcção. No entanto, a sua mãe, atenta, soube modelar a fúria de Isabel e fazer sobressair nela a ternura e docilidade. E de tal maneira a ternura ganhou terreno que o maior castigo de Isabel acontecia quando a sua mãe, à noite, se despedia dela sem lhe dar um beijo. Então, Isabel compreendia que não se tinha portado bem, e, meditando fazia exame de consciência e corrigia-se. Isabel era ainda uma criança quando a sua família se mudou para a cidade de Dijon. Aqui Isabel perdeu o pai tão querido que a morte lhe roubou. O dia da primeira comunhão, a 19 de Abril de 1891, foi «o grande dia» da vida de Isabel. Tinha então 10 anos, pois nascera no dia 18 de Julho de 1880. Estudou piano desde os 8 anos de idade no Conservatório, vindo a tornar-se uma «excelente pianista», segundo expressão do seu professor de música. Participou em concertos organizados, e, os jornais falaram do seu grande talento ainda mal a menina Catez chegava aos pedais do piano. Entre músicas e festivais, bailes, férias e diversões foram decorrendo os anos de Isabel. 


Aos catorze anos sentiu-se irresistivelmente atraída por Jesus. Aos 18 a sua mãe pretendeu casá-la com um esplêndido noivo, mas Isabel respondeu: «o meu coração já não está livre, dei-o ao Rei dos reis, já dele não posso dispor». O desgosto da mãe foi grande. Mas foi mais amargo quando soube que Isabel queria entrar no Carmelo, que tantas vezes tinham visitado, pois ficava ali a dois passos. A mãe apenas consentiu a entrada da filha no Carmelo quando alcançou a maioridade, aos 21 anos. No dia 2 de Agosto de 1901, Isabel entra definitivamente nessa bela montanha do Carmo que pela sua solidão e beleza a atraiu irresistivelmente. A partir de então o seu nome será Irmã Isabel da Santíssima Trindade. «Gosto tanto do mistério da Santíssima Trindade! É um abismo no qual me perco. Deus em mim, eu n’Ele. É o grande sonho da minha vida. Para uma carmelita viver é estar em comunhão com Deus desde a manhã até à noite, e desde a noite até de manhã. Se Deus não enchesse as nossas celas e os nossos claustros, oh!, como tudo seria vazio! Mas é Ele que enche toda a nossa vida fazendo dela um céu antecipado». 

A irmã Isabel tomou o hábito a 8 de Dezembro de 1901. Iniciada a vida de noviciado a paz e a felicidade mudou-se em noite escura; foi o momento da purificação interior. Com a profissão religiosa, que fez a 11 de Janeiro de 1903, recuperou a paz e a serenidade interior. Depressa a Irmã Isabel descobriu a sua vocação. Lendo S. Paulo descobriu que ela devia ser o «louvor da glória de Deus». Esta ideia e esta vocação serão o rumo e o norte de Isabel da Santíssima Trindade: «louvor de glória» é uma alma que mora em Deus e O ama com amor puro, amante do silêncio qual lira mantida sob o toque misterioso do Espírito Santo, fazendo sair de si harmonias divinas. 

«Louvor de glória» é uma alma que contempla a Deus em fé simples e permanece como um eco perene do eterno cântico celeste. O segredo da felicidade é não se preocupar consigo mesmo, é negar-se em todo o momento». 

Seguindo o Caminho que é Cristo, a Irmã Isabel entrou no mistério de Deus através de Maria a quem gosta de chamar a Porta do céu. Seguindo os nossos pais e mestres~, Teresa de Jesus e, sobretudo, João da Cruz, de quem constantemente fala nos seus escritos, Isabel mergulha no mistério das Três Pessoas Divinas, nesse Oceano sem fundo que é a Santíssima Trindade e que ela se sente envolvida por dentro e por fora. Tal como S. João da Cruz se sentiu fascinado pela formosura de Deus, também Isabel da Trindade se sente atraída pela beleza de Deus. Isabel gostava de ver o sol penetrar nos claustros e recordar aquela comparação de Santa Teresa que dizia que a alma é como um cristal que reflecte a Deus. A nossa irmã deixou-nos este testemunho: «cada dia na minha vida de esposa me parece mais belo, mais luminoso, mais envolto em paz e amor». 

Mas foi a vivência total daquela frase de S. João da Cruz: «a alma perfeita e unida a Deus em tudo encontra alegria e motivo de deleite até naquilo que entristece os outros, e sobretudo alegra-se na cruz» que levou a Irmã Isabel a perder-se em Deus como uma gota de água no Oceano, segundo a sua própria expressão. Foi o perfeito louvor da glória de Deus, por isso, apenas com 26 anos se encontrava preparada para voar para a paz: «tudo é calma, tudo fica tranquilo e é tão bom, a paz do Senhor». 

Nos finais de Março de 1906, a Irmã Isabel foi colocada na enfermaria. Sentia-se feliz por morrer carmelita e escreve esta frase que é uma cópia do verso de S. João da Cruz: «sem outro ofício senão o de amar, estou na enfermaria». As Irmãs rezavam pela sua cura e Isabel juntou o seu pedido às orações da comunidade, mas sentiu que Jesus lhe dizia que os ofícios da terra já não eram para ela. No dia 1 de Novembro comungou pela última vez e dois dias antes da sua morte disse ao seu médico: «é provável que dentro de dois dias esteja no seio da Santíssima Trindade. É a Virgem Maria, aquele ser tão luminoso, tão puro, com a pureza do mesmo Deus, quem me levará pela mão e me introduzirá no céu tão deslumbrante». Pouco antes da sua morte, Isabel disse às suas Irmãs esta frase tão bela e que ficou célebre: «Tudo passa! No entardecer da vida só o amor permanece». Frase que se parece com aquela outra de S. João da Cruz, também muito bela e conhecida: «à tarde serás examinado no amor». A sua última noite foi terrivelmente penosa, pois às suas horríveis dores juntou-se-lhe também a falta de ar, mas ao amanhecer Isabel sossegou, e inclinando a cabeça abriu os olhos, e exclamou: «vou para a Luz, para o Amor, para a Vida», e adormeceu para sempre. Era a madrugada do dia 9 de Novembro de 1906.
Recolha de Fr. Carlos

11 fevereiro, 2013

"NUNCA É TARDE”



Andamos sempre atrás de bons propósitos e grandes projectos. Procurando um horizonte de sentido e realização pessoal. Dando o melhor para fazer desta vida um sonho realizado de felicidade e santidade (dizemos os cristãos). Com optimismo, com verdade, com alegria. Sendo felizes, tornando os outros felizes. Mas o tempo para tudo isto escasseia. Passa demasiado veloz para sermos felizes. E santos. E não tem volta atrás. Não sabemos o dia nem a hora. Porque tudo pode ser novo de um momento para o outro, não esqueçamos: “nunca é demasiado tarde”!
Argumento/Sinopse

“Nunca é tarde”, 2007, realizador Rob Reiner, com Jack Nicholson e Morgan Freeman, gen. Drama/aventura/comédia, 137 minutos.
A história é simples. Dois personagens totalmente díspares têm um elemento comum – a certeza, devido a um cancro terminal, da morte a curto prazo. Um mesmo quarto do hospital. Um mesmo tempo: seis meses a um ano de vida. De um lado, Jack Nicholson (Edwardo Cole) interpreta o papel de um bilionário mal-humorado, impaciente, só e pouco amigável. Quatro vezes divorciado, diz-se casado com o seu próprio dinheiro. Morgan Freeman (Cárter Chambers) é o oposto. Mecânico de automóveis para sobreviver, simpático, amigo, conhecedor de praticamente tudo, feliz com a família que ama e onde é amado. A ambos é diagnosticado um cancro. Que fazer? Porque nunca é tarde demais, é preciso aproveitar o tempo para ser feliz. Diria, egoísticamente feliz. Numa lista longa, estabelecem-se as possíveis realizações: sky-jumping, conduzir um Shleby 350, fazer uma tatuagem, visitar os Himalaias, as pirâmides do Egipto, o Taj Majal, fazer um safari em África, beijar a rapariga mais bonita do mundo, rir até chorar ou ajudar um estranho por bem: eis alguma das possíveis acções. E no fim? A quase certeza do dever cumprido. Será?

Crítica

Nesta comédia simples, por vezes negra, a interpretação histriónica de dois grandes nomes de Hollywood relança a pergunta pelo sentido da vida. Apesar do tema (a doença e a morte), é uma história cheia de bom humor. Poderia ser, no entanto, muito mais emotiva e mais humana, atendendo aos temas em questão. Duas personalidades opostas levam por diante o sonho hedonista de não deixar de fazer o que sempre se sonhou fazer. No fundo, parece que nenhum dos dois enfrenta realmente a morte: quem abandonaria a família – objecto de atenção, prioridade e privação durante 45 anos – num momento tão delicado como a doença terminal de um cancro, como faz Chambers? Ou viajar à volta do mundo, sabendo que tudo isto está para terminar? E no meio de tudo isto, a procura da felicidade (passageira) neste aquém de existir. Onde ficam os grandes princípios e a razão última por que vivemos? A história torna-se, então, previsível, passando demasiado tempo “em viagem”. Ainda por cima, a realização deixa a desejar, já que com facilidade percebemos, pela fragilidade dos efeitos especiais, que nem Nicholson, nem Freeman estiveram no Egipto, em África ou na Índia. O que poderia ser um excelente contributo narrativo sobre o sentido da vida fica-se pelo “Nunca é tarde demais” de dois velhos, por vezes a querer coisas de jovens na ilusão da eterna juventude…

Aplicações

Apesar da temática geral do filme (morte e cancro), há um conjunto de pequenas cenas que se poderão utilizar em diferentes contextos e temáticas, sobretudo na catequese com jovens (recordo que o filme é para maiores de 13 anos). A pergunta pelo sentido da vida, a procura da felicidade, da missão que temos a desempenhar neste mundo. Mas também se pode abordar o tema da solidão, da família e da relação entre fé e razão, fé e agnosticismo.

Actividade

Com este filme, podem-se desenvolver diferentes tipos de actividade consoante o tema a ser tratado. É de notar que um certo tom no filme de pendor negativo no que toca ao presentismo excessivo deverá ser tido em conta para uma abordagem de fé à temática da morte.

Sequência

Nesta sequência inicial, o personagem de Freeman pergunta pelo sentido da existência que é difícil avaliar a vida de uma pessoa: será pela fé? Será pelo amor? Importante é descobrirmos a forma de abrir o nosso coração. Esta cena completa-se com a cena final do filme. Que nos move nesta vida? Que é que nos serve para avaliarmos, nós cristãos, a vida que vivemos?

Nesta sequência, é explicado o sentido da “lista” que estão prestes a desenvolver antes de “bater a bota” (“the Bucket list” é o titulo original do filme).

Durante a viagem, os dois personagens estabelecem um interessante diálogo sobre a fé. Afinal, o que é a fé? O que é acreditar? Qual a relação entre razão e fé? O diálogo é curto e pode servir de introdução a uma apresentação sobre a fé e razão (por exemplo, com o texto de João Paulo II, fides et Ratio)

No cimo das pirâmides do Egipto, Cárter conta uma história sobre a felicidade. Quando se chegar ao outro lado da vida, os deuses egípcios antes de deixar entrar no céu perguntarão: encontraste felicidade em vida? E a tua vida, deu felicidade a outro? Estas são também questões importantes a serem respondidas na nossa vida.

Querendo tratar o tema da família, da qualidade das relações interpessoais entre os membros da família versus a tristeza de se viver só, aqui encontra uma sequência, que apesar de curta, é demonstrativa das diferenças.

Sequência final do filme em que se cumprem os elementos que faltam à lista e se compreende a sequencia inicial que aqui fica completa. 

10 fevereiro, 2013

Vai e lança as redes.



No nosso itinerário de conhecimento e de seguimento de Jesus, este ano litúrgico orientados pelo Evangelho de Lucas, a Palavra de Deus dos últimos domingos apresenta-nos Jesus como Aquele em quem se cumpre as escrituras, anunciando boas notícias de salvação da parte do Pai a toda a humanidade, admirado pela sua sabedoria e inteligência por parte dos seus conterrâneos, mas simultaneamente e paradoxalmente incompreendido e alvo de inveja, por causa da sua linhagem familiar humilde: “não é Ele filho do carpinteiro?”. À mesquinhez dos seus, Jesus reage com a denúncia profética: “nenhum profeta é reconhecido na sua terra”! E sem medo, avança no meio deles para realizar o projeto que o Pai lhe confiou: anunciar o Reino. Hoje, vemos o mesmo Jesus, junto ao lago de Tiberíade, a convidar outros, a participar com Ele nesta missão de salvação que se iniciou na sinagoga de Nazaré.

O tema dominante que percorre os 3 textos da Palavra de Deus, é o da chamada: ––“A quem hei-de enviar?” ––. Deus continua a chamar ontem, hoje e sempre: Isaías, Pedro e Paulo… e cada um de nós. Nesta chamada há algo de comum a todos os humanos, um mesmo reconhecimento: a confissão da nossa humanidade frágil, perante a majestade e grandeza de Deus. A resposta de Deus ao reconhecimento da fragilidade, apesar de tudo é o chamamento e o envio, porque Ele quer servir-se da condição humana frágil para continuar a fazer ouvir a sua mensagem de libertação e realizar na história as suas maravilhas a favor da transformação do nosso mundo como espaço de encontro, reconciliação e solidariedade efetivas.

         A primeira leitura mostra-nos como Isaías –– que haveria de revelar-se como o profeta por excelência –– toma consciência do abismo que separa Deus da sua condição de criatura: “Ai de mim que estou perdido, pois sou um homem de lábios impuros”. No mais profundo do seu ser, Isaías percebeu até que ponto se encontrava dividido pelo medo, pela consciência dos seus limites e pela insegurança das suas competências para ser portador da palavra de Deus aos seus contemporâneos. Mas o reconhecimento dos seus limites não o levou a desistir a responder ao apelo de Deus –– “Quem enviarei, quem irá por mim?”–– , confiando na graça de Deus que pode contornar os nossos medos e inseguranças, dispôs-se a dar uma resposta generosa e desinteressada: “Aqui estou, podes enviar-me”.

         Na Segunda leitura confrontamo-nos com outro chamado e enviado, Paulo; embora reconheça “ser o menor de todos os apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo”, pela graça de Deus e não pelos seus méritos, é o que é, o grande pregador do anúncio do Evangelho aos pagãos.

         Finalmente, o evangelho apresenta-nos a cena tão bela, e sugestiva do chamamento dos primeiros discípulos, num contexto de desempenho da sua atividade profissional: a pesca, tendo como protagonista, Pedro, representando os seus colegas de profissão.

Pedro é um profissional na arte de pescar. Hábil no lançamento das redes e bom conhecedor dos mares; por isso, poderia ter achado absurda a ordem de Jesus de fazer-se ao largo e lançar as redes, após uma noite de trabalho sem sucesso. Mas Pedro é já um homem de fé, por isso obedece à ordem do Mestre, Jesus. E isto é o que melhor define a fé: confiança total numa pessoa. Face ao sucedido imprevisível, ao mistério, Pedro sente os seus limites e exclama: “afasta-te, Senhor, porque sou um homem pecador”. Mas Jesus anima, entusiasma, apoia e valoriza as qualidades e a auto-estima daqueles homens simples e lutadores: “Não temas, a partir de hoje serás pescador de homens.”... Quem se deixa tocar por Jesus, sente-se transformado, confiante, liberto, salvo e experimenta que se iniciou um novo processo de mudança na sua vida frágil. Esta experiência é tão gozosa que não se pode resistir, levando a atitudes de radicalidade: “e eles reconduzindo os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus”.

Esta é a história destes vocacionados e qual é a nossa história como vocacionados para o anúncio do evangelho? Damos espaço na nossa vida a Deus para ouvir as suas interpelações desafiantes e sentir-nos enviados à missão? A vocação cristã não é apenas chamamento de vocações de especiais como o sacerdócio e a vida religiosa. Deus não interpela apenas a colaboração de alguns, mas chama a todos, desde a nossa situação concreta de vida: estado de vida, profissão mais ou menos qualificada. A nossa resposta está na medida dos recursos que Deus nos concedeu e da nossa generosidade. A colaboração com Deus é sempre necessária onde quer que haja vida e existam problemas humanos urgentes a resolver.

         Cada um de nós está convidado a ser pescador de homens e somos enviados a uma parcela do reino onde nos encontramos como cristãos, onde somos insubstituíveis. Não há ninguém sem vocação para algo de bom e belo a realizar nos seus contextos de vida. A única condição é que cada um se sinta interpelado e seja capaz de responder com generosidade, com confiança, sem medos, disposto a deixar e a mudar o que for necessário para seguir Jesus. A proposta e o convite é desafiante, exigente e realizador. Como respondo, a este desafio atual: “quem enviarei...?”

         Cada um de nós é chamado a ser ou a realizar aquilo que nenhum outro é ou faz, e a cada um está reservado um lugar no mundo que ninguém mais ocupa. Para cumprir essa missão ou vocação requer-se o risco da fé confiante, a aventura da esperança e a força do amor que transforma e produz o milagre da surpresa e da abundância: ––“todos ficaram assombrados por causa da pesca realizada” ––, porque é Deus quem realiza, pela sua graça, o que nós não poderemos realizar através dos nossos recursos, porque cada um é o que é pela graça de Deus, que não é inútil mas operante e transformadora.
Pe. Carlos Gonçalves